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SUBCULTURAS HOMOSSOCIAIS X HETEROSSOCIAIS


Filme "Laranja Mecânica"(1971): um exemplo de como sob um discurso de rebeldia e antissistema pode estar uma prática e simbologia reacionária e masculinista em um grupo social homossocial

SUBCULTURAS HOMOSSOCIAIS X HETEROSSOCIAIS Henrique A. Kipper



PERGUNTAS:

Subculturas são homogeneamente progressistas ou reacionárias?

Seus discursos verbais sobre si correspondem sempre às suas práticas simbólicas? Subculturas com práticas simbólicas masculinistas ou homossociais masculinas conseguiriam superar o conteúdo prático desses discursos? A valoração, aceitação e conflitos das subculturas com a cultura dominante são determinados pelas suas características homossociais ou heterossociais? Os conflitos entre subculturas são explicáveis pela questão da homossocialidade x heterossocialidade?


INTRODUÇÃO


A questão do masculinismo nas subculturas e nas cenas musicais tem sido comentado já há algumas décadas tanto por participantes destas quanto por pesquisadores:


“A cena Punk era e ainda é uma cena totalemente dos garotos”

“The punk scene has been and still is an All boys scene.”

(Dinah Cancer, da banda 45 Grave, em entrevista a Alice Bag, 2015).


“95 % dos participantes no mosh e no stage-diving são masculinos”

(Krenske e McKay, 2000, p. 298, citado em (3)).

o rock era até então um “clube de garotos – brancos- raivosos”.

Joy Press e Simon Reynolds comentaram em seu livro “Sex Revolts” (1996)

“A estilização de produtos da cultura heavy metal está centrada em um investimento coletivo em uma “masculinidade fantástica”, tornada possível por um dedicado mercado de álbuns, shows e outras atividades”.

( 1 'Heavy metal and subcultural theory: a paradigmatic case of neglect?’, in Muggleton, D.)

“mais do que qualquer outro tipo de rock ‘n’ roll, nenhum dos vários gêneros desta forma de música popular e sua cultura associada é visto como mais tradicionalmente masculino e desavergonhadamente macho em sua attitude e imagem do que o Heavy Metal.”

(Doing Gender in Heavy Metal, Perceptions on Women in a Hypermasculine Subculture)


A autora Joy Press e o autor Simon Reynolds, no seu livro “The Sex Revolts: Gender, Rebellion and Rock” (As Revoltas Sexuais: Gênero, Rebelião e Rock”, 1995) definiram o histórico machista, misógino e racista do Rock desde a sua apropriação comercial nos 1950 até os anos 70 e desenvolvimentos conflitantes posteriores. Mas a corrente dominante do Rock, ainda hoje, continua apegada a estrutura conservadora descrita nesse livro, especialmente com o discurso “rock raiz” ou “underground, em que raiz é uma senha para “valores masculinistas tradicionais”.


Também a autora Lauraine LeBlanc em seu livro “Pretty in Punk: Girls' Gender Resistance in a Boys' Subculture (“Bonita de Punk: Resistência de Gênero das Garotas em uma Subcultura de Garotos”, 1999)”- importante não confundir com o livro de tricô homônimo de 2022- faz uma minuciosa análise do masculinismo e exclusão feminina dos espaços de poder e distinção na subcultura Punk/Hardcore, levando à necessidade de um movimento de resistência feminino dentro desta subcultura. Esse movimento de resistência feminino e feminista no underground está nas raízes de uma nova subcultura – só de mulheres - surgida no início dos anos 90, as RiotGrrls.


Isso não é surpresa pois já em 1975 as pesquisadoras subculturais Angela McRobbie e Jenny Garber (no livro “Resistance Through Rituals: Youth subcultures in Post War Britain, organizado por Stuart Hall e Tony Jefferson) apontavam a “invisibilidade” feminina, de participação e representação de mulheres em diversas subculturas até então, confirmando no nível dessas subculturas até então o mesmo que Joy Press e Simon Reynolds descrevem nas cenas musicais ligadas ao Rock.


A partir dos anos 70 temos subculturas que passam a incluir as mulheres e a representação feminina de forma diferente. Assim, além das tradicionais “subculturas de garotos brancos com raiva” (...) (que vamos chamar de homossociais) vamos ter outras estruturas (heterossociais, etc). Com o tempo tivemos também subculturas de “garotos não brancos com raiva”, mas é preciso ver essa questão no contexto do racismo ainda dominante. No texto a seguir explicamos a questão da homossociabilidade masculina como uma tendência conservadora.

Sobre a já previsível réplica de que essa seria uma questão superficial ou periférica na luta de classes e não pode servir para demarcar conservador x progressista, ESTE texto da brilhante pensadora contemporânea Roswitha Scholz, que explica porque a questão da representação feminina e do patriarcado são a base sobre a qual se assenta o capitalismo E a sociedade industrial dos últimos séculos.

Dito isso, voltemos à questão subcultural.


HOMOSSOCIALIDADE, O QUE É?


Aqui, quando nos referimos a masculino e feminino estamos falando dos papeis sociais construídos historicamente no ocidente nos últimos dois milênios ou mais. O que nos interessa aqui é que as características sociais consideradas femininas têm um valor social reduzido ao serem atribuídas a qualquer coisa ou ser. Vivemos ainda em uma civilização patriarcal (apesar das conquistas da luta feminista por igualdade nos últimos 100 anos, ainda estamos longe de uma isonomia social ou simbólica entre os gêneros).


Eve Kosofsky Sedgwick definiu o conceito de Homossocial:

“Homossocial” é uma palavra usada ocasionalmente na história ciências sociais para descrever as ligações sociais entre pessoas do mesmo sexo; o termo é um neologismo obviamente formado por analogia com “homossexual” e obviamente designado para se distinguir de “homossexual”. Na verdade, esse termo é aplicado às atividades de “ligação masculina” que podem, em nossa sociedade, ser caracterizadas por intensa homofobia, medo e ódio da homossexualidade.” (Eve Kosofsky Sedgwick - Between Men)


Podemos pensar em diversos universos masculinos e intensamente homossociais: lutadores de box, toureiros, caçadores etc. Podemos pensar nos exércitos e alguns esportes ao longo da história, como a F1 ou o futebol no Brasil. Ou na indústria do Cinema, onde ainda hoje as posições de poder permanecem em mãos masculinas (e mesmo na posição de diretoras só recentemente algumas mulheres conseguiram lugar), entre muitos outros exemplos, ou a política partidária no Brasil...


Mesmo que um percentual pequeno de mulheres exerça essas atividades, as “regras do jogo”, sua simbologia e discurso apagam as mulheres ou, no máximo, as colocam como objeto, ou uma versão masculinizada.


O foco dessas formas de socialização é uma intensa ligação afetiva entre pessoas do mesmo gênero, especialmente homens, na defesa – consciente ou alienada – de sua posição de poder.


Nosso foco aqui é identificar o quanto diferentes subculturas são mais ou menos homossociais, heterossociais ou mesamo bissociais, o quanto isso determina suas práticas serem mais ou menos conservadoras e aceitas em relação à sociedade dominante, e como isso determina os conflitos entre subculturas.


Eve Kosofsky Sedgwick descreve a representação homossocial especialmente na literatura, mas aqui vamos levar esse conceito ao contraste entre subculturas.


Por oposição, podemos facilmente pensar em segmento sociais ou das artes heterossociais: em que tanto mulheres e homens, masculino e feminino são representados como sujeitos no plano simbólico e ocupam os espaços sociais de distinção de forma mais equitativa.


É obvio que em uma sociedade ainda predominantemente patriarcal grupos sociais homossociais masculinos se alinham com o status quo da cultura dominante.


NAS SUBCULTURAS


Alguns exemplos: diversos autores e participantes explicaram como algumas subculturas são hipermasculinas ou homossociais masculinas. É interessante perceber que essa dominância se expressa por todo campo simbólico das subculturas:

-rituais de dança que privilegiam a prática masculina, ocupação de pista predominantemente masculina -vestimentas em que o estilo é masculino (em algumas subculturas o visual feminino é apenas uma versão do masculino) ou masculinizante

-discurso simbólico em letras, material gráfico, performances que representa o feminino como objeto -apologia de valores comportamentais masculinos, crítica a outras subculturas ou posers com linguagem misógina ou homofóbica, como comentamos mais nestes artigos:

Vamos dar exemplos dessas estruturas homossociais masculinas em duas subculturas das mais populares e citadas: a Headbanger (Metal) e a Punk. O fato dessas subculturas terem se aproximado muito na virada para os anos 80 estabeleceu um sistema simbólico e práticas comuns, como já comentamos. Também este artigo explorou em profundidade as cenas Punk e Metal em Portugal em comparação com a Gótica:

* Importante lembrar que há vários subgrupos dentro destas subculturas, e que há movimentos feministas e progressistas que exatamente buscam ressignificar esses comportamentos tradicionais. Mas para isso é preciso ter claro que eles existem e como funcionam.

METAL & PUNK


O discurso não verbal simbólico (e as vezes verbais) implica na atração de indivíduos que compartilham de rituais simbólicos e práticas que tornam reais – enquanto coletivo e grupo social – esses discursos simbólicos: é fácil ver a dominância (em quantidade e atitude) do público masculino em plateias ou pistas metal, hardcore ou punk. Os próprios rituais de dança e ocupação do espaço social deixam isso claro, há milhares de vídeos e fotos online, vamos ver só 3 exemplos do que falamos:


Desde os final dos anos 70 o punk revigorou o metal, gerando metal moderno e convergindo em padrões comportamentais e simbólicos (além dos musicais) como comentamos neste texto punk x metal. Mas nem seria preciso tanto, diversas participantes e autoras ligado às cenas punk e hardcore denunciaram o masculinismo e machismo nesses segmentos desde os anos 70 até os anos 90, a ponto de surgir um movimento feminista alternativo com muitas mulheres do no punk/hardcore que gerou uma nova subcultura alternativa só de mulheres na virada para os anos 90: as Riot GRRLs. As Riots são assim uma subcultura homosocial reativa, de resistência, que denuncia as características masculinistas e machistas – alinhadas com práticas conservadoras e tradicionais – de vastos setores do chamado “underground” e no mundo em geral.


UNDERGROUND: A LARANJA REACIONÁRIA?


O trecho abaixo sobre a cena headbanger / heavy metal poderia ser aplicado ao conceito de underground tradicional, especialmente em muitas variantes do rock:


“O resultado deste processo é que os homens da classe trabalhadora, ao adoptarem a música e os ornamentos da contracultura, reinventam-na como uma celebração da ‘masculinidade selvagem’ e do ‘machismo’ mercantilizado. Isto é claramente evidenciado num relato oferecido por Chambers (1985: 123), onde o heavy metal é descrito como “intimamente ligado às emoções imediatas da música alta, da cerveja e da masculinidade comunitária”. Esta visão, de como a cultura heavy metal permite uma celebração coletiva da masculinidade das classes mais baixas, é ela própria derivada do relato seminal, de Frith e McRobbie (1978/1990), do heavy metal como “cockrock”. McRobbie, juntamente com Frith, foi um dos primeiros teóricos a rejeitar o heavy metal devido ao seu consumo público, por jovens do sexo masculino, baseava-se no consumo passivo da cultura de massa sexista. Assim, a ‘libertação sexual’ prometida pela contracultura é transformada num machismo sexista que encontra um público pronto em homens da classe trabalhadora.”

(Brown, A.R. (2003) 'Heavy metal and subcultural theory: a paradigmatic case of neglect?)


O Heavy Metal é uma cena rock muito bem-sucedida comercialmente, mas na sua origem compartilha essa mesma estrutura descrita com cenas emergentes do final dos anos 1960 e início dos anos 1970: skinheads (69 ou 79, de forma diferente) e punks USA (1970-1975) ou UK pós77, e outras tendências do rock tradicional, que, mesmo hoje seguem esse mesmo modelo ainda que em circuitos não-comerciais e não-midiáticos. O discurso não-comercial (“para poucos” contra o sistema dos “ricos”) acaba por se encaixar nesse discurso conservador de classe trabalhadora, justificando a “brodagem” masculina, informalidade anti-lei e contra qualquer “mimimi”, como uma versão superficial do filme “A Laranja Mecânica” (1971).


Não por acaso o mesmo argumento de “combate ao sistema opressor” no nível macropolítico como desculpa para justificar comportamentos reacionários e opressores no nível micropolítico é usado por muitas subculturas homossociais masculinas. No filme, vemos a irmandade masculina, violência e o estupro justificados dessa forma, em uma obra cinematográfica que envelheceu muito mal. Não por acaso, no bar que a gangue do filme frequenta, mulheres são literalmente objetos: mesas, em poses o mais vulneráveis possível. (É preciso lembrar que a versão original inglesa do livro é diferente do filme, mas a versão que caiu no imaginário POP dos anos 70 foi a que chegou aos cinemas).

Vemos assim como - também – o conceito binário de underground x mainstream é um problema por apagar inúmeras práticas e discursos reacionários que são aceitos sob o manto unificador e justificador de “underground”. Ainda mais quando se fala de “underground raiz” vemos que a intenção é manter sociabilidades reacionárias do que era underground dos nos anos 1960 e 1970.

Os discursos verbais das subculturas sobre si mesmas muitas vezes não correspondem com suas práticas não verbais e simbólicas: estas últimas tendem a revelar a verdade das subculturas. Quando vemos a dominância masculina nos espaços físicos, simbólicos e de status, os discursos verbais muitas vezes se tornam sombras inconsistentes.

Assim muitas vezes o mito do underground como “naturalmente” progressista serve muitas vezes apenas ocultar práticas de segmentos homossociais masculinos ou reacionários que buscam preservar esse espaço “seguro para práticas conservadoras” em uma sociedade que – em muitas áreas - já evoluiu como um todo.


Isso pode mudar?


Podem essas subculturas homossociais masculinas com uma carga simbólica tão forte se atualizarem com o tempo? Podem parar de atrair pessoas interessadas no discurso reacionário expresso em sua simbologia? Ou serão capazes de coletivamente ressignificar seus símbolos para emitir outras mensagens sem deixar de existir?


Essa são perguntas que ficam para a reflexão de cada um desses grupos sociais e seus integrantes, mas qualquer que seja a resposta exige uma ação coletiva para mudança ou um conformismo coletivo para seguir a inércia e “deixar como está” e ser “rock raiz”. Ambas são escolhas conscientes e intencionais, para o bem ou para o mal.


SUBCULTURAS HETEROSSOCIAIS e O PÊNDULO DE GÊNERO


Ao longo da história das subculturas (assim como em outras questões políticas e econômicas centrais) a oposição do masculino x feminino é um fator pendular importante, por ser uma das questões sociais não resolvidas a que as subculturas se referem.

Assim, Rockers que se viam como “mais machos” chamavam Mods de efeminados nos anos 60; uma vertente Mod (os Hard Mods) mais crua deus origem aos Skin Heads de 1969 que valorizavam a masculinidade da classe trabalhadora, e passaram a considerar Hippies e Glam-Rockers como estilos “de viados”. O Punk tem um rápido momento “GLS” friendly até 1976 mas o sucesso midiático de 1977 atraiu jovens conservadores da classe trabalhadores e hooligans, fazendo que o Punk e o derivado Hardcore – convergindo com o Headbangers - derivassem rapidamente para o grupo de subculturas masculinistas que curtem música e coisas “sérias” em oposição a “novos efeminados” e “viados”: new romantics, góticos, new wavers... também perseguidos pelas novas versões de Skin Heads dos anos 80. E a história continua até hoje, com essa oposição binária se atualizando nos conflitos entre novas subculturas; e se mantendo entre as antigas que não acabaram.


Aliás, o conceito de música “séria” é uma expressão muito usado em subculturas homossociais masculinas, em oposição a qualquer coisa considerada “de menina”, feminina, efeminada, homossexual, pop ou comercial.


Já nas subculturas heterossociais e bissociais vemos algumas características em conjunto:


1) há uma representação feminina positiva ou até apologética (ou pelo menos há representação simbólica feminina) e espaços sociais físicos e de status são mais compartilhados em diferentes níveis, dos igualitários até os com predominância feminina. A representação feminina não é apenas uma versão da masculina, e/ou as formas tradicionais de feminilidade dão usadas de forma metalinguística ou irônica;

2) em alguns casos pode haver dominância feminina (e LGBTQI+) dos espaços sociais, e/ou incorporação e valorização de elementos femininos no discurso ou visual masculinos, com subversão ou sátira dos papeis tradicionais de gênero.


No grupo de subculturas heterossociais podemos listar subculturas como a Gótica. A subcultura Gótica tem um potencial simbólico mais hiperfeminino exatamente por se apropriar de todo discurso disruptivo nessa área que a literatura gótica já havia construído nos últimos dois séculos e meio, como já vimos nos artigos abaixo, que podem interessar em uma leitura complementar a este artigo: O Queer na Literatura Gótica Por quê a subcultura Gótica é Libertária?


Em outra oportunidade precisamos aprofundar as características diferenciais entre grupos heterossociais e bissociais, e outras subculturas com estas características.


NA SUBCULTURA GÓTICA: UTOPIA E PRÁTICA


Segundo J. Gunn, “as mulheres góticas deliberadamente distorcem as imagens dominantes da mulher objeto sexual como uma estratégia de empoderamento” irônica. Por isso as personagens de Dominatrix, Bruxa e outros arquétipos de “mulher poderosa” são tão usados como personagem feminino pela população gótica. Mas esses personagens femininos (como o visual masculino) são exagerados e irônicos, como explica uma entrevistada de Gunn: “... mulheres na cena Gótica são dolorosamente conscientes das normas de beleza da Cultura Ocidental. Quantas vezes você viu uma mulher pegar uma imagem comum nas fantasias sexuais masculinas (a estudante, a animadora de torcida, a empregada francesa etc.) e dar uma torcida obscura nisso, transformando em um tipo de poder sexual. Eu posso até imaginar duas de minhas amigas dizendo – Você quer jogar esse jogo de poder sexual? Legal, eu vou jogar tão bem que vou colocar você de joelhos. Como você quer, garoto bobinho?” (em Goth: Undead Subculture, pag.52).


Também Kristen Schilt comenta que “através desse uso hiperbólico de roupa sexy para mulheres e uso de maquiagem, as góticas foram capazes de subverter os estereótipos através de uma feminilidade exagerada. Os góticos, por contraste, subvertem os estereótipos masculinos através de cross-dressing”. (em Goth: Undead Subculture, pag. 69).


No caso dos visuais masculinos, o exagero vai em outro sentido, em incorporar elementos femininos de cabelo, maquiagem, vestuário e comportamentos em um novo tipo de visual masculino que escape aos estereótipos masculino tradicionais, sem buscar uma androginia “passável”. Obviamente, fora da subcultura gótica, tais visuais masculinos seriam considerados totalmente efeminados ou “travestismo”.

Lauren Goodlad coloca que “a masculinidade gótica é em muitos aspectos um assunto ideal para uma teoria pós-moderna de performatividade de gênero”. (em Goth: Undead Subculture, pag. 92) Ou apenas moderna: uma chave importante para entender a subcultura gótica é o “Baudelarianismo” e o consequentes Dandismo e autoironia. Baudelaire propôs em seu tratado de estética “O Pintor da Vida Moderna” que “só há beleza no que é artificial”. Não por acaso, os Dândis encarnavam os aristocratas melhor que os Aristocratas reais.


Essa postura é prima do “usar uma máscara para falar a verdade” de Wilde e avô da postura de criar personagens de David Bowie, que foi timoneiro do Glam Rock com essa postura no começo dos anos 1970, influenciando fortemente as origens dos principais artistas da nascente subcultura gótica. Para Siouxsie Sioux e seus acólitos do Bromley Contingent aos rapazes de “escola de arte” como o Bauhaus, até toda família Synth descendente dos Blitz Kids, Bowie era deus e Roxy Music e Eno seus profetas.


Nos espaços públicos e pistas de dança em que vemos a população gótica é comum notarmos uma divisão igual entre gêneros ou uma predominância feminina. Também muitas formas de dança, muitas privilegiam estilos de dança considerados historicamente femininos (e que são realizados também pelos homens góticos), como no caso de estilos ligados ao ethereal, darkwave, pagan folk etc. Aliás, o próprio fato de todos os estilos serem dançantes no sentido tradicional é uma diferença em relação a outras subculturas em que a “dança” se resume a movimentos corporais que não “ofendam a masculinidade”.


Mas mesmo em uma subcultura como a Gótica é preciso ficar atento para que as ironias simbólicas não passem a ser lidas literalmente. A pesquisadora Dunja Brill descreve a subcultura gótica como “hiperfeminina”. Mas mesmo em uma subcultura com uma utopia de “genderlessness” (ausência de gênero) ou “hiperfemininilidade” podemos ver lapsos em que os símbolos são tomados fora do contexto.


Porém em um grupo social como o Gótico, que tem uma utopia de igualdade de gênero expressa na prática em seus discursos e rituais não verbais, há maior probabilidade de o grupo defender esses valores do que em um grupo em que as práticas simbólicas apontam para valores tradicionais da sociedade ou até regressivos.


Como Dunja Brill comenta no final de seu livro sobre a Subcultura Gótica:


“Os discursos de gênero na subcultura gótica são fragmentados e por vezes contraditórios, tal como noutros setores da nossa cultura pós-moderna cada vez mais fragmentada. Comparado com muitos outros setores da sociedade, o gótico oferece alguns pontos de partida para uma renegociação mais progressista, mais aventureira e mais igualitária da masculinidade, feminilidade e sexualidade. O seu apagamento parcial de algumas das divisões de género visíveis e profundamente enraizadas na nossa cultura através da prática de estilo da androginia masculina, a sua aceitação das sexualidades queer e o seu ideal abrangente de ausência de gênero estão todos aí como potenciais a serem aproveitados.“


Porém, conclui a autora, apesar desses desenvolvimentos progressistas, mesmo a subcultura Gótica não alcança sua própria utopia de ausência de importância do gênero e igualitarismo total.


Todavia precisamos lembrar que o papel das utopias é exatamente fazer a prática e a realidade “correr atrás” do ideal. Além disso, é preciso comparar exatamente a realidade e prática em outras subculturas que tem utopias ou práticas regressivas (segundo muitas pesquisas acadêmicas e uma infinidade de relatos de participantes), e com cenas populares que não propõe nem simbolizam nenhuma crítica ao status quo (sertanejo, country, pagode, funk-pop etc).


A FUNÇÃO DA UTOPIA


De fato, a função do discurso utópico sempre é “puxar a evolução ao máximo possível” nas condições históricas, da época e materiais da realidade, mesmo que não se realize naquela geração. Assim, não é surpresa que subculturas com práticas simbólicas progressistas tenham a tendência de serem espaços mais inclusivos e progressistas, mesmo que não realizem totalmente suas utopias.


Podemos assim definir a subcultura gótica como hiperfeminina e heterossocial, visto que faz apologia de valores historicamente femininos, tem maior inclusão de mulheres nos espaços sociais e de distinção, e são representadas simbolicamente, entre outros fatores. Essas características estão fortemente embasadas em na narrativa de origens da subcultura gótica e nos elementos culturais assimilados, indicando uma intencionalidade coletiva.


Por exemplo, a disseminação na subcultura gótica de personas feminina poderosas não patriarcais, como Lilith, a Bruxa, a Feiticeira e a Dominatrix como símbolo, mesmo fora do contexto BDSM entre outras.


Podemos argumentar ainda que a simbologia e outras formas de discurso tem uma outra função: a função de “propaganda”, tendendo a atrair pessoas novas que se identificam com aqueles discursos e a utopia que representam. Essa dinâmica populacional tende a especializar as subculturas em direção de suas práticas simbólicas.


Mas cabe a população de subculturas com utopias progressistas manter-se ativa para evitar a diluição de seus conceitos em uma fragmentação de produtos sem ética, como “estilo musical” ou “visual alternativo” sem ligação com a ética e vivências subculturais coletivas.


Claro, fora das subculturas música e visual podem ser consumidos como produtos sem vinculação ética, mas é exatamente isso que define a oposição entre cultura dominante atual e as subculturas: as primeiras tomam os objetos fragmentariamente, as subculturas os inserem em um sistema que aponta para uma visão de mundo e uma ética específicas.


MARX E A ALIENAÇÃO ANACRÔNICA DO “ROCK RAIZ”


“Na A Ideologia Alemã, Marx sugere que a função da ideologia é esconder contradições no status quo, por exemplo, redistribuindo-as em uma narrativa diacrônica de origens. Correspondente a essa função, uma importante estrutura da ideologia é um apelo idealizado a valores ultrapassados de um sistema anterior em defesa de um sistema posterior que na prática destrói as bases materiais daqueles valores”. (em: Rubin, Gayle; The Traffic in Women)

É exatamente esse o processo que vemos nos discursos do “rock raiz”, que procura transferir o valor de práticas de sua narrativa de origem na “contracultura dos anos 60/70” sobre práticas que no século XXI significam o contrário daquelas. A permanência da atitude homossocial masculina em algumas subculturas acaba tentando esconder práticas reacionárias sob um discurso “libertário” de rebeldes do rock antiquado.


Assim, um discurso idealizado de origem ou um discurso macropolítico idealista pode esconder práticas micropolíticas reacionárias ou incoerentes.


O pêndulo de gênero entre as subculturas desde a segunda guerra mundial encena tentativas de solução simbólicas e lutas por avanços ou retrocessos no contexto não resolvido dessas questões em nossa sociedade patriarcal.


Isso explica o conflito entre subculturas: muitas divergem da cultura dominante em direções opostas, simbolizando utopias opostas que resultam em práticas divergentes.


A prática de muitas subculturas pode ser até mais conservadora que a cultura dominante, enquanto outras apresentam simbolizações e práticas progressistas. Em ambos os casos, todas as subculturas criam “espaços de diferença” com estas características.


MUITAS RESPOSTAS E POUCAS CONCLUSÕES, APENAS ESPERANÇA


Talvez daqui a alguns anos a geração pós-pandemia (ou seus filhos depois) ressignifiquem totalmente mesmo as subculturas mais homossociais e masculinistas em novos grupos sociais em que os espaços sociais sejam igualitários. Exatamente porque subculturas são escolhas coletivas de como simbolizar elementos do passado para falar do presente e projetar uma visão de mundo alternativa futura, isso seria possível, mas requereria um reconhecimento dos problemas e decisões coletivas sobre isso.


Não há como saber. Podemos apostar no que já é progressista e torcer pelo melhor em outras subculturas com simbologias e rituais sociais regressivos.


Mas por enquanto podemos ter algumas certezas.

Os conflitos entre subculturas se devem em geral por algumas serem homossociais e outras heterossociais. Nesse contexto, o fato do conceito de Underground “rock raiz” remeter a uma estrutura homossocial masculina herdada do século passado nivela o poder no underground pela prática mais conservadora e próxima da sociedade tradicional patriarcal, mesmo que as diferenças de visual e música sejam radicais em relação a ela.


Isso explica o grande nível de reclamação de setores do underground em relação as redes sociais de internet, pois a deslocalização e linguagem nesta permitiu um domínio e empoderamento feminino, sendo disruptiva do sistema tradicionalmente masculino de transmissão de capital cultural em muitas subculturas. Já comentamos isso no artigo O Colapso do Capital Subcultural como Instrumento de Poder.

Como já comentamos, “A internet foi disruptiva em vários setores. (...) mulheres, de qualquer classe social, muitas afrodescendentes, muitas periféricas (no sentido tanto de estarem em cidades pequenas ou periferia de cidades grades ou não pertencerem a grupos de controle) encontraram um lugar e discurso para se afirmarem como sujeitos com voz em diversas subculturas, especialmente na gótica.”


Esperemos que os conceitos arcaicos de underground do século XX sejam relegados às páginas da história durante o século XXI. Para o final do patriarcado, quem sabe, no século XX?


Então melhor começar logo. Treinar o olhar para perceber as dinâmicas homossociais masculinas na ocupação de espaços subculturais – e na sociedade e arte como um todo - é um primeiro passo.


H. A. Kipper, 2023 ....


PARA SABER MAIS, BIBLIOGRAFIA e NOTAS:

Pretty in Punk: Girls' Gender Resistance in a Boys' Subculture - Lauraine LeBlanc (1999)


Between Men- Eve Kosofsky Sedgwick - English Literature and Male Homosexual Desire-Columbia University Press (1985)


O Valor é o Homem- Roswitha Scholz - Teses sobre a socialização pelo Valor e a Relação entre os Sexos http://www.obeco-online.org/rst1.htm “All rock and roll is homosocial: The representation of women in the British rock music press”. Popular Music no. 20(3). Davies Helen. 2001. https://www.cambridge.org/core/journals/popular-music/article/abs/all-rock-and-roll-is-homosocial-the-representation-of-women-in-the-british-rock-music-press/7F5737FC57313AE1431AD3B1B2286458#


Sex Revolts: Gender, Rebellion and Rock'N'Roll – JOY PRESS e SIMON REYNOLDS (1996)


Goth: Undead Subculture - Lauren M. E. Goodlad (Editor), Michael Bibby (Editor) (2007)

Goth Culture: Gender, Sexuality and Style – DUNJA BRILL (2008)


Goth: Identity, Style and Subculture - PAUL HODKINSON (2002)


Girls and Subcultures – ANGELA McROBBIE e JENNY GARBER (1977) em The Subcultures Reader- Editado por Ken Gelder (1997) Resistance Through Rituals: Youth Subcultures in Post-War Britain (1975) – Edited by Stuart Hall & Tony Jefferson


Rubin, Gayle. The Traffic in Women: Notes on the The˜Political Economy of Sex” Literary Theory: An Anthology. Eds. Julie Rivkin and Michael Ryan. Rev. ed. Malden: Blackwell, 2001. 533-60


“The commodity stylization of heavy metal culture revolves around a collective investment in a ‘fantastic’ masculinity, made possible by the existence of a dedicated market of records, concerts and other activities” (quote 1) (1) Brown, A.R. (2003) 'Heavy metal and subcultural theory: a paradigmatic case of neglect?’, in Muggleton, D. and Weinzierl, R., eds. The post-subcultures reader. Oxford: Berg, pp. 209-222. “Arguably more so than any other kind of rock ‘n’ roll, none of the many

genres of this form of popular music and its associated culture are thought to

be more traditionally masculine and unashamedly manly in its attitude and

image than heavy metal is” (quote 2)


(2) Anna S. Rogers & Mathieu Deflem (2021) Doing Gender in Heavy Metal- Perceptions on Women in a Hypermasculine Subculture +(autores citam: 2003; Gaines 1998; Recours et al. 2009; Walser 1993; Weinstein 2000)


(3) O gótico também é feminino : Igualdade de género numa subcultura musical

The gothic is female too : Gender equality in a musical subculture - Manuel Pereira Soares (2020)



Guerra, P., & Gelain, G. (2017). Corpetes, pulseiras e batons : Género e diferença na cultura punk em Portugal e no Brasil. Em G. Diógenes, L. Dabul, P. Guerra & P. Costa (Eds.), I Congresso Internacional Lusófono Todas as Artes/Todos os Nomes – Livro de Atas (pp. 49-66). Universidade do Porto. Faculdade de Letras.


Notas: “In The German Ideology, Marx suggests that the function of ideology is

to conceal contradictions in the status quo by, for instance, recasting them

into a diachronic narrative of origins. Corresponding to that function,

one important structure of ideology is an idealizing appeal to the outdated

values of an earlier system, in defense of a later system that in practice

undermines the material basis of those values.19

31 Rubin, Gayle. “The Traffic in Women: Notes on the ‘Political Economy’ of Sex.” Literary

Theory: An Anthology. Eds. Julie Rivkin and Michael Ryan. Rev. ed. Malden:

Blackwell, 2001. 533-60.


“The result of this process is that working-class males, by adopting the music and trappings

of the counterculture, reinvent it as a celebration of ‘wild masculinity’ and commodified

‘machismo’. This is clearly brought out in an account offered by Chambers (1985: 123)

where heavy metal is described as ‘closely tied to the immediate emotions of loud music,

beer and communal maleness’. This view, of how heavy metal culture allows a collective

celebration of lower-class masculinity, is itself derived from the seminal account, by Frith

and McRobbie (1978/1990), of heavy metal as ‘cockrock’. McRobbie, along with Frith, was

one of the earliest theorists to dismiss heavy metal because its public consumption, by male

youths, rested on the passive consumption of sexist mass culture. Thus, the ‘sexual

liberation’ promised by the counter culture is transformed into a sexist machismo that finds

a ready audience of working-class males.” Brown, A.R. (2003) 'Heavy metal and subcultural theory: a

paradigmatic case of neglect?’, in Muggleton, D. and

Weinzierl, R., eds. The post-subcultures reader. Oxford: Berg,

pp. 209-222.


Bertie Marshall – parte do The Bromley Contingent - descreve o fim do “Punk” 76 com o sucesso do novo punk 77 na mídia:

“And so it fell apart… dispersing like confetti… Tracy had died… the Pistols were about to split up. The ‘punk’ scene exploded. Before, when we’d walk into the Vortex Club you could hear the whispers of reverence: “There’s The Bromley Contingent.” The last time I went there, or the Roxy, it was violent and dangerous; smashed bottles, kids mutilating themselves with razor blades/broken glass… nobody looked interesting, all like rejects of a litter. Commercialisation and chaos had taken over. I retreated. The suburbs, again. A few years passed. Steve Strange and Rusty Egan asked me to meet them in a club in the West End—they told me about a new scene, all about make-up and posing, there would be a shop, a collection of clothes, a band, like the Pistols, and Malcolm and Vivienne… “Like Punk, but different.” Steve and Rusty would be the figureheads, did I want to be part of it? I’d been going out every night for the past three years… it just wasn’t going to happen, I thought. So I went elsewhere, nowhere; and we all know what happened to them. I can see Andy Warhol as Zeus, Father of the Gods, scattering his ‘children’ far and wide over the decades. Firstly with his own Factory scene, then the Glam rockers, onto us in 1976—The Bromley Contingent—to the New Romantics and finally the NY club kids of the early 1990s. We were all products of Warhol’s imagination. All glamour addicts. Salvador Dali once said to Andy Warhol, “Those punks, they are the shit children.”

Marshall, Bertie. Berlin Bromley (pp. 135-136). Lume Books. Edição do Kindle.

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