Imagem: foto da escultura "Prometeu Acorrentado" de Nicolas Sébastien Adam, século XVIII.
A SUBCULTURA GÓTICA É LIBERTÁRIA, e esta característica libertária está profundamente enraizada em suas características estéticas, que foram ressignificadas a partir das características da literatura gótica e do cinema do século XX. Já comentamos essa questão longamente no livro Happy House 2, mas vamos resumir aqui. Também explicamos essas características detalhadamente no artigo Algumas Características da Literatura Gótica.
MAS como essas características indicam que a subcultura é libertária? Vamos observar apenas quatro elementos principais, entre muitos:
CARÁTER PROMETEICO: No mito, Prometeu rouba “o conhecimento” dos deuses, para compartilhar com os simples mortais, e é eternamente punido por isso. Um mito que se baseia em desafiar um ser criador todo poderoso para compartilhar conhecimento ou desafiar regras estabelecidas não pode ser conservador. O Lúcifer de John Milton (na obra "O Paraíso Perdido", 1667/1674) é outro exemplo de atualização desse mito, tornando o líder dos anjos caídos uma alegoria das revoluções republicanas, democráticas e anti-monárquicas do século XVIII e XIX.
ANTICLERICALISMO: é importante não confundir anti-clericalismo com anti-religião ou ateísmo. Os primeiros autores de romances góticos ingleses, por exemplo, escreviam do ponto de vista de um protestante do século XVIII, portanto usar cenários exóticos da idade média católica mediterrânea (como em O Castelo de Otranto, O Monge, obras de Ann Radcliffe e outros, ocados na Itália ou Espanha) no auge da corrupção moral da Igreja Católica, usando o excesso de alegorias da ritualística e simbólica Católica daquela época, era uma crítica à instituição Igreja como certo tipo de instituição política opressora, e não contra a religiosidade em geral. De qualquer forma, mais uma vez temos um elemento contra um sistema de poder opressor, que hoje pode ser encontrada na hierarquia e burocracia de várias Igrejas que se tornaram negócios no século XXI da mesma forma que a Igreja Católica da Idade Média (obs: hoje mesmo dentro do cristianismo existe uma crítica à esse problema, feita por setores progressitas ou historicamente ligados à esquerda, como os pensadores da Teologia da Libertação).
A RELAÇÃO COM O CORPO e PAPÉIS DE GÊNERO: não é por acaso que a subcultura gótica subverte os papéis de gênero tradicionais, com um visual masculino que cria uma feminilidade masculina e um visual feminino que é hiper-feminino (como explicam Dunja Brill, P. Hodkinson e outros autores). Primeiro, todo o sistema simbólico gótico é Ying, ou do campo feminino (noite, lua, bruxa, elemento prata, cor preta ou frias, gatos pretos, o mar, o frio, a caverna ou labirinto subterrâneo, o inconsciente etc). A Homologia é clara: totalmente obscura e feminina. A questão das sexualidades desviantes se encontra neste contexto, e aparece já nos romances góticos do século XVIII e XIX, sendo uma diferença em relação ao Romantismo (que tende ao polo platônico ou incorpóreo). Basicamente, não há como uma subcultura que subverte os papeis de gênero totalmente não estar no polo libertário. Assim, ser machista, homofóbico, transfòbico etc, na cena Gótica, é uma total incoerência. O BEM E O MAL INTERIOR: A temática e tropos góticos trazem um conflito entre bem e o mal interior, entre razão e desrazão que é interior a cada indivíduo: somos intrinsecamente impuros. Ou seja, é o contrário do maniqueísmo. É admissão do ser humano como imperfeito e conflituoso internamente. Não há como projetar o mal no mundo ou em algum culpado. É o próprio indivíduo que tem essa luta interna. Creio que não é preciso explicar muito como esse conceito subverte qualquer conceito de opressão sobre qualquer grupo social por ser “origem de todo o mal” ou "impuro". Grupos autoritários ao longo da história adotaram um discurso romântico/nacionalista e de pureza idealizada, e não gótico: o gótico se identifica com o que os próprios Nazistas, por exemplo, classificaram e perseguiram o que consideravam “arte degenerada” na época, como o expressionismo e o fauvismo.
Essas são algumas características ESPECÍFICAS da subcultura Gótica que sustentam de forma coerente e consistente seu caráter libertário ao longo das décadas. OUTRAS subculturas podem ter outras alegorias ou motivações estéticas ou históricas para serem libertárias. Algumas podem as vezes coincidir, mas é importante não esquecer quais são as nossas características centrais e perenes.
Finalmente, saindo da cena gótica apenas, como indivíduo ou cidadão, seja você emo ou do hip-hop, do metal ou do funk, punk ou indie, você tem todas as motivações para ser libertário, afinal, seria muito difícil ter qualquer subcultura como a gótica (e outras) em um regime ditatorial ou repressor de qualquer tipo, ou mesmo ter qualquer identidade cultural, étnica ou de gênero alternativa. Lembrando que a ditadura brasileira reprimiu todos os artistas dos movimentos mais criativos ou questionadores, como a Tropicália.
Leia a parte de literatura (pag. 63 a 96) do livro Happy House in a Black Planet- VOLUME 2 aqui, e você vai entender essa questão ainda melhor. Outros artigos do livro abordam outros aspectos do caráter libertário da subcultura gótica.
H. A. Kipper
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NOTA: QUESTÃO DE MÉTODO:
Na literatura e nas artes plásticas a interpretação do discurso (ideológico) se dá a partir da estética da obra: a forma carrega o discurso, mais que o tema. Tanto que a parte da filosofia que estuda o significado da produção humana, especialmente das artes, se chama Estética. Além das artes, na Linguística, Semiótica, Antropologia, Comunicação e Estudos Culturais, entre outras áreas, essa também é uma questão bastante estudada. No caso dos movimentos culturais ou subculturas se dá o mesmo: os elementos estéticos estão lá constituindo um discurso significativo, coerente e legível. Por exemplo, não estabelecmos que uma obra é romântica apenas porque foi escrita entre tal e tal ano, mas pela análise de seus elementos estéticos que expressam um discurso ideológico (até porque não existe obra "pura" de um estilo, mas obra em que existe estilos predominantes). Assim, um quadro realista sobre a morte forma um discurso diferente de um quadro expressionista com o mesmo tema. Um poema cubista sem a forma cubista não traz o discurso cubista, um quadro sem a forma expressionista não é expressionista, etc. Assim, o principal é observar a genealogia, recontextualização e permanência de traços estéticos, que constroem um discurso que não é apenas verbal ou escrito, mas é construído de forma homológica com todas as formas de expressão humanas.
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