Matéria de LARISSA OLIVEIRA
David Bowie, na primeira metade dos anos 70 em visual Glam estilo Egípcio
GLAM ROCK
Glam Rock é um subgênero do rock que viveu seu auge na primeira metade da década de 70 em resposta ao rock protesto e progressivo, e inspirado, entre outras coisas, pelo culto à imagem das vanguardas decadentes.
DAS FLORES AO RAIO
Durante a década de 60, o mundo passou por diversas transformações sociopolíticas e culturais. Nos Estados Unidos, a segunda onda do feminismo eclodia trazendo a consciência do eu-político, levando as mulheres a lutarem por direitos, ao passo que ativistas negros clamavam pelo fim da segregação racial e milhares de jovens se opuseram à Guerra do Vietnã. A libertação Stonewall é marcada por pioneiras LGBTQIAP+.
Na América Latina, as ditaduras políticas instigavam a luta pelo fim da censura e tortura e muitas nações pelo mundo travavam batalhas contra o imperialismo. O protesto político ganhava contorno nas canções da época e elas foram essenciais para a disseminação do ativismo político como forma de combater opressões. O mundo se encontrava então, mais complexo, e a música também. A revolução sexual do Flower Power, que reuniu quase meio milhão de pessoas no festival Woodstock, foi pouco tempo depois traumatizada pelo terror da família Manson em 69 e no início dos anos 70, alguns dos maiores ídolos hippies morrem. Some isso à estagnação econômica europeia da época que adicionava mais uma camada de incertezas.
Para tantas mortes, censuras, e desilusões, houve uma reação significativa e ainda assim, negligenciada da história cultural do século XX, o Glam Rock. Este capítulo não foi planejado, e sim estimulado por um desejo de escapismo e inovação para novos tempos que se formavam. A ruptura acontece quando se usa o melhor do passado, no caso do Glam inglês o que havia de mais provocador e escapista das artes, e se cria algo a partir disso.
Brian Eno, na fase glam dos anos 70
"HIGH GLAM": A TRÍADE DAVID BOWIE + BRIAN ENO E ROXY MUSIC + MARC BOLAN E T-REX
O que havia de mais provocador artisticamente na década de 60? Andy Warhol e a turma da Factory. A atrizes não-binárias Candy Darling e Jackie Curtis figuraram sessões de fotos e filmes subvertendo normas de gênero e sexualidade com declarações à frente do tempo. Elas foram imortalizadas no hino transgressor ‘Walk on the Wild Side’ de Lou Reed, que faz parte de seu rápido flerte com o Glam Rock no disco Transformer de 72. O jovem e pouco conhecido David Bowie era tanto fã de Lou Reed (e The Velvet Underground) como de Andy Warhol e quando frequentou os mesmos lugares que eles, conheceu tanto Lou quanto seu outro ídolo, Iggy Pop, dois artistas que romperam com barreiras sonoras e performáticas nos anos 60. David Bowie voltaria para sua terra natal, Inglaterra, com a cabeça fresca de ideias para aquele ano de 1971.
Ao mesmo tempo, o artista psicodélico e nascido no mesmo ano que Bowie, Marc Bolan, dá contornos à essência Glam no famoso programa de TV, Top of the Pops, performando com T.Rex o boogie eletrizante Hot Love, com glitter em suas bochechas (por isso o Glam Rock também é chamado de Glitter rock) e trajando um terno de cetim prateado, fazendo a cabeça de muita garotada e dando início à T.Rexstasy (uma brincadeira com a palavra êxtase para expressar o delírio dos fãs), que só perdia o posto para a Beatlemania.
Marc Bolan, do T-Rex
Há fontes que alegam que foi a esposa do produtor de Bolan, Chelita Secunda, que usava glitter e que deu um pouco ao cantor na presença de Bowie e Elton John. Ambos também o queriam. Ela também teria dado a Bolan seu primeiro scarpin. Para gravar seu álbum de 1972, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, Bowie desenvolveu a persona ‘Ziggy Stardust’ que seria um alien bissexual enviado à Terra para impedir um apocalipse, como vemos no que se tornaria o hino Glam, Starman. A conotação do alien como um ser de sexo ambíguo assim como de alguém desajustado era genial. Com tantas transformações e incertezas na sociedade, se sentir como um alien era comum; então quando Bowie incorpora essa persona, era iminente que a nova geração de jovens iria ver no artista o seu próprio reflexo.
Enquanto isso, um estudante de arte e amante da música eletrônica, Brian Eno, junta-se à então recém banda, a sofisticada Roxy Music, exibindo suas plumas e maquiagem, aderindo uma magnitude à sua performance como tecladista do espaço sideral. Essa tríade seria precursora do movimento Glam que se iniciou na Inglaterra e seria adotada por outros países, inclusive o Brasil. Podemos dizer que o Glam nasceu com o visual andrógino e o som elétrico que reagiam ao fim de uma era devastada pelo contraste Horrores vs. Revoluções que abalaria o mundo como ele era até então.
Lou Reed, por volta de 1973
O Glam foi uma resposta à ruptura com o mundo antigo de dicotomias e inundado de experimentações como nunca antes. Quando David Bowie lançou Aladdin Sane em 1973 com seu icônico raio atravessando seu rosto, era como se fosse um divisor de águas para muitos que seriam atingidos por uma força tão poderosa que seria capaz de transformar e unir todos aqueles presos em personas que não mais podiam ser constantes. Flores pacíficas foram eletrizadas por raios dissonantes.
PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS
Além da arte pop de Andy Warhol e associados, o Glam Rock seria influenciado por outras vanguardas dentro do estilo ‘decadente’ de tempos anteriores. Isso pode nos levar de início a alguns lugares. Comecemos pelo teatro de cabaré pré-guerra na Alemanha de Weimar. O decadentismo surgiu no século XIX na Europa como estilo artístico proposto ao escapismo radical do moralismo, vivendo o dia de hoje como se fossemos morrer amanhã. A decadência foi encontrada no cabaré, numa Alemanha em crise e David Bowie, ao assistir ao filme Cabaret de 1972 do diretor Bob Fosse, viu nele uma forma de construir sua persona apocalíptica (Laranja Mecânica de 1971 e 2001:Odisseia no Espaço de 1968 de Stanley Kubrick também foram obras fundamentais para o Bowie Glam).
Se o estilo fez parte do Cabaré alemão, ele também atravessou a ideologia dos dandies. Dandies eram pessoas da Era Vitoriana que não eram necessariamente da aristocracia, mas agiam como tal para se beneficiarem da atenção que atraíam por seu estilo extravagante, intelectualidade e culto de si mesmo. Na década de 60, a subcultura dos Mods era considerada uma roupagem moderna dos dandies na Inglaterra, com rapazes que nunca completaram a educação superior que se vestiam para impressionar outros rapazes e tanto Bowie quanto Bolan aderiram ao estilo na época. Numa entrevista para a revista NME em 1972, Marc Bolan mencionou que era o rei Mod do seu bairro.
Cabaret, versão do filme, 1972
Seriam os glam rockers dandies mais transgressores que os mods? Dois grandes dandies que sem dúvida influenciaram os glam rockers foram Noël Coward e Oscar Wilde. Noël foi entre outras coisas, um dramaturgo e músico inglês, famoso no início do século XX por desestabilizar as normas de gênero e sexuais em suas peças teatrais e também pelo seu estilo que estava em constante aperfeiçoamento. Seu cigarro e camisola de cetim chamava atenção da mídia e de outros ingleses, mas Coward não queria atenção para a sua homossexualidade, porque seria rechaçado e perderia sua fama. Vale ressaltar que até 1967, a homossexualidade era ilegal na Inglaterra.
The Rocky Horror Picture Show, filme de 1975, depois do sucesso anterior do musical
A projeção de personas nos palcos da era Glam era algo puramente teatral, mas Bowie e Bolan se abriram sobre suas experiências. Em janeiro de 1972, Bowie diria à revista musical Melody Maker que era gay e Bolan se revelou bissexual em 1975. A revolução Glam era então liderada por artistas que transgrediram as normas de sexo e gênero. Ao contrário de Coward, Oscar Wilde, célebre por sua obra ‘O Retrato de Dorian Gray’, foi condenado por sua homossexualidade que chocou o mundo que a via como uma doença, um ato indecente e nojento, isso antes da virada do século XIX. Wilde não tendo como negar sua orientação, deu uma impressionante resposta ao júri na qual dizia, por exemplo, que não há nada nele [amor entre dois homens] que seja antinatural. Sua obra citada acima traz muito da essência Glam, uma vez que o personagem do romance, Basil, vive uma vida dupla em nome das belezas artificiais e prazeres da vida mundana. As influências de Oscar Wilde na cultura Glam serão bem exploradas no filme Velvet Goldmine (do diretor Todd Haynes, 1998) sobre o qual falarei mais adiante. Podemos sim dizer que Noël Coward e Oscar Wilde foram Glam antes do Glam, mas antes de Bowie ou Bolan, existiu Little Richard.
Little Richard
Considerado por muitos como o pioneiro do rock’n’roll na década de 50, o artista negro e queer, de fato revolucionou com seu topete imperioso, suas capas de lantejoulas, seus gritos, seu bigode feito de lápis de olho e cílios postiços e sua efeminação flamejante que escancararam as portas do conservadorismo da época. O Glam rock bebeu muito da fonte de Richard. Ele também beberia de uns dos primeiros herdeiros do pai do rock, The Rolling Stones. No filme promocional de Jumpin’ Jack Flash de 68, os integrantes usam make bem pesada. Além das performances sexualmente ambíguas de Mick Jagger.
Os artistas Glam vinham dessa geração de 60 tentando se encaixar entre o heavy rock, o psicodélico e o progressivo, mas encontraram seu próprio caminho quando puderam mesclar todos esses sons e finalmente atrair o que mais queriam e não conseguiam até então, a fama. Para alcançar a fama, precisariam de artifícios e nada mais atraente do que customizar o ego com uma mitologia de si mesmo. Se David Bowie apostou no mito do alien que trazia mensagem de paz à Terra, Bolan contou para diversos jornalistas mais de uma versão de sua experiência reveladora enquanto vivia com um lagarto em Paris (ouça seu primeiro single The Wizard de 1965). Ele também falaria sobre outras experiências místicas com levitação, espíritos e demônios, e até já saiu com um mágico— lembrou do seu chapéu icônico?
A atmosfera misteriosa que Bolan criou para si mesmo revela não só o culto da sua imagem, mas também leva à adoração de fãs que buscam esse toque de mágica como escape da sua realidade. Brian Eno colaborava com essa vertente ficcional do Glam com seus sintetizadores futurísticos, que o levaria a explorar outros sons escapistas como a música ambiente. É claro que esses artistas tiveram outras influências na formação de suas imagens e sons, mas é necessário entender a raiz antes de explorar as ramificações.
PARA ALÉM DA TRÍADE: O "LOW GLAM"
Ainda na Inglaterra, uma banda de skinheads chamada Ambrose Slade flopava sucessivamente nas paradas musicais até diminuir seu nome para Slade, deixar os cabelos crescerem, trocar o jeans pela calça prateada de cetim e lançar um cover de Little Richard. Slade nadou na onda do Glam Rock e se deu muito bem. Além de conseguirem emplacar hits #1 nas paradas como a clássica Mama Weer All Crazee Now, a banda atraía de imediato os jovens modernos que se identificavam com os erros propositais de ortografia das letras e ao mesmo tempo, a banda desafiava o rótulo eloquente dos principais nomes do Glam Rock. Sendo assim, o dialeto do Slade definiria sua própria marca dentro do gênero como também a batida que pode ser acompanhada com pisadas no chão e palmas pelo público. Os caras do Slade eram mais viris, o seu som mais cru e barulhento (ouça Gudbuy T'jane) e a abordagem com a audiência era diferente da usada por Bowie e Bolan.
No entanto, essa vertente do Glam mantém o senso de escapismo por meio de bebidas, drogas, mulheres e festas presente em várias letras da banda. Muitas bandas também começavam suas músicas com diálogos com palavras “hey” e continham coros adolescentes no refrão. Infelizmente a repetição dessa fórmula se esgotaria pouco tempo depois e conferiria duras críticas como a de "uma cena musical mortalmente chata e prematuramente amadurecida" de acordo com a gravadora Bomp!
Outra banda da turma do Slade foi Sweet. O quarteto inglês tem sua origem no estilo comercial e chiclete do Bubblegum Pop, inspirado pelas bandas de desenho animado como the Archies. O refrão com apelo juvenil e por vezes, com duplo sentido, seria empregado por bandas Glam, sendo uma das influências para o movimento. Mas o diferencial de Sweet era a fusão do pop com o heavy rock de bandas como The Who que inspiraria o surgimento do Glam Metal anos mais tarde (é só dá play no álbum Sweet Fanny Adams para sentir). Foi Sweet que lançou o hino dos jovens consumistas Teenage Rampage, uma vez que a cultura Glam tinha se tornado produto e estampava capas de revistas adolescentes. A dupla de produtores musicais Nicky Chinn e Mark Chapman escreviam e gravavam vários hits do Sweet e outros nomes Glam, como Mud. Em 1972, em entrevista ao jornal britânico, Record Mirror, Nicky declarou que uma melodia e batidas dançantes eram coisas que os adolescentes iriam se apegar e entender e não músicas cabeça. Não é à toa que muitas das composições deles trazem títulos pop como “Little Willy” e “Can the can” de Suzi Quatro, de quem falarei no próximo tópico.
Outros nomes importantes da Inglaterra foram os pintados do Wizzard (que em 73 lançaram o hit de Natal Glam I Wish It Could Be Christmas Everyday) e Mott the Hoople, que quando estavam prestes a acabarem a banda depois do fracasso de vendas dos seus álbuns, foram ajudadas pelo seu grande fã, David Bowie, que escreveu o single e produziu o álbum de mesmo nome, All the Young Dudes, o maior sucesso do grupo. Paul Francis Gadd, que mudou seu nome para Gary Glitter durante a era Glam, também foi um dos maiores hit makers como os nomes mencionados acima, porém, apesar de alguns dos seus hits terem sido imortalizados por Joan Jett (Do You Wanna Touch Me, I Love You Love Me Love e Doing Alright with the Boys), suas diversas condenações por abuso e pornografia infantil o tornam intragável e longe de admiração. Ainda temos Alvin Stardust, que iniciou sua carreira no começo dos anos 60 como Shane Fenton e inspirado pelo Ziggy Stardust de Bowie e Vince Taylor, outro roqueiro que inspirou Bowie, formou sua nova persona, fazendo sucesso com “My Coo Ca Choo”.
Jobriath
O Glam Rock reverberou nos Estados Unidos com menos intensidade na primeira metade da década de 70, mas há um nome que tinha tudo para ser o maior nome do Glam por lá e não foi. Estou falando de Bruce Wayne Campbell, sim, o rapaz já possuía um nome de nascimento icônico, que se tornaria Jobriath. Ao contrário de Bowie e Bolan, que apesar das declarações sobre suas sexualidades, não iam muito longe no assunto, Jobriath foi o primeiro gay assumido a assinar com uma grande gravadora e se intitular a fada madrinha do rock. Suas músicas claramente falavam sobre suas relações sexuais, mas seu estilo futurista o levou a ser massacrado pela mídia, que o taxava de cópia de Bowie. Todas as apostas estavam nele para ser o Bowie americano, mas nenhuma publicidade adiantou.
Jobriath lançou dois discos, um homônimo em 73 (ouça Take me I’m Yours), que traz seu corpo nu em formato manequim e Creatures of the Street no ano seguinte, no qual também incorpora uma figura Glam de outro planeta, mas a sua tentativa de estrelato ficou por ali, e Bruce assumiu outra persona para cabarés de Nova Iorque. Os Estados Unidos ainda veriam outro ato Glam que durou pouco e dividiu a crítica. New York Dolls foi formada em 1971, mas só em 1973 lançariam o disco homônimo de estreia com um som abrasivo e bagunçado, e um estilo bem mais drag que muitas bandas Glam da Inglaterra.
New yorl Dolls, circa 1972/73
Por serem tão inovativos na sua terra, assim como foi Jobriath, não agradaram de cara, sendo chamados de “chacota dos Rolling Stones”, mas NYD eram irreverentes e não ligavam se sua aparência era bizarra, ou se seu som era inclassificável, apesar da forte inspiração Glam. Eles eram os desajustados na cena musical de Nova Iorque que caminhava aos poucos para a explosão punk, e por tudo que representavam, foram tidos como proto punk. New York Dolls ganhou um culto que Jobriath jamais teve. Outro nome que merece ser lembrado quando se fala de Glam nos Estados Unidos é Alice Cooper. Não por ter pegado o trem andando, mas por ter sido um dos primeiros a canalizar a forma pitoresca do Glam no seu trabalho. E Alice Cooper é de uma vertente do Glam mais horror shock, inspirada em filmes de terror, com rímel escorrendo pelo rosto e adereços macabros nos palcos.
O Glam se inspirou muito em obras góticas como Dr. Jekyll and Mr. Hyde e a própria Frankenstein, que lidam com dupla personalidade.
NO BRASIL No Brasil, a estética dos discos de estreia de Edy Star e Secos & Molhados foram os primeiros registros Glam. A estética Glam estava muito mais presente do que o som em si. No disco Sweet Edy de 1974, o artista posa de plumas, salto plataforma, e é uma mistura de Marc Bolan com Alice Cooper (ouça Edyth Cooper). A faixa ‘Superestrela’ sem dúvida é a mais próxima do Glam Rock, mas Edy tem um destaque por ser o primeiro músico a se declarar homossexual no Brasil, e estamos falando da época de ditadura. Quando foi entrevistado para O Pasquim, a manchete que o descrevia como andrógino foi censurada.
Secos e Molhados, Ney Matogrosso ao centro
Ser Glam rocker no Brasil era bem diferente da Inglaterra, era uma afronta política bem mais perigosa. A influência de Edy vinha principalmente do teatro e em 72 além de ser o ano do lançamento do filme Cabaret, era também do grupo teatral Dzi Croquettes, que se tornou um dos maiores símbolos da contracultura LGBT do nosso país. Já Secos & Molhados, disco homônimo de 73, trazia os membros com rostos maquiados e roupas e performances exuberantes com elementos da cultura brasileira. Outras bandas que ousaram com a estética Glam nos palcos foram Ave Sangria e Made in Brazil. Outro marco da história Glam no Brasil foi o show de Alice Cooper em 74, que foi o primeiro internacional do país, atraindo 158 mil pessoas ao Anhembi.
Os Dzi Croquettes desafiando a ditadura brasileira nos anos 1970
AS MULHERES DO GLAM E O SEXISMO
A maior parte das listas sobre bandas Glam trazem uma única mulher, Suzi Quatro. Ela realmente foi uma das artistas mais sucedidas do gênero, vendendo mais de 50 milhões de época, com um som mais próximo da vertente do Slade e com sua androginia ao ser mais masculina. Ela declarou à revista brasileira POP em 1974 que não era nem mulher, nem garoto, o seu sexo era o rock. Suzi também não era gay e quebrou muitas barreiras para mulher rock não só a do gênero, mas também a de ser uma instrumentista e compositora, coisas vistas como anomalias para mulheres na época.
Rita Lee, ao centro, e seu grupo Tutti Frutti
Quando sua gravadora a disse: espero que você seja a próxima Janis Joplin, ela respondeu que não queria ser como ninguém (48 Crash é a sua assinatura). Nisso ela estava certa, porque viriam outras como ela depois, em especial Joan Jett. Mas e além de Suzi? Podemos dizer que aqui no Brasil Rita Lee flertou com o Glam no seu período com a banda Tutti Frutti (inicialmente com participação de Lucinha Turnbull) incluindo o disco Fruto Proibido que foi produzido por Andy Millis que tinha recém trabalhado com Alice Cooper. Rita flertou mais ainda nas suas performances da época, como no primeiro Hollywood Rock do mesmo ano, trajando um macacão prateado e cabelos bem mais vermelhos, inspirada por Bowie.
Suzi Quatro
Há mais mulheres que fizeram parte da primeira fase do Glam Rock de lugares como França e Holanda, mas eu não consegui encontrar informações suficientes sobre elas, e isso é fruto do sexismo e racismo (existe negro no Glam rock?) da indústria musical, que ainda era muito branco, masculino e heteronormativo. Se Suzi Quatro conseguiu emplacar vários hits mesmo não sendo feminina, ela não falava sobre feminismo e era como um dos rapazes. É o tipo de camuflagem usado por muitas mulheres artistas para conseguir entrar no jogo. Com Patti Smith não foi diferente.
Ainda assim, isso não significava que era tão fácil para as mulheres terem mais visibilidade na música. Além do mais, a imagem que o Glam Rock vendia de androginia, foi também possível graças às companheiras deles. Angela Bowie foi importante na montagem de Ziggy Stardust. June Bolan foi mentora e inspiração espiritual de Marc. Gloria Jones, companheira de Marc depois de June e até a sua morte, já era compositora e cantora de Gospel e Soul renomada, especialmente por gravar ‘Tainted Love’ em 65, música que também faria sucesso na versão do grupo Soft Cell tempos depois, e no T.Rex fez backing vocals além de tocar clavinete entre 73 e 77, inspirando as inclinações Gospel e Soul dos álbuns desse período. Gloria lançaria um álbum em 78 chamado Windstorm, o qual ela dedicaria à memória de Bolan, que também foi pai de seu filho, Rolan. Em 2010, junto com seu filho, Gloria fundou a Marc Bolan School of Music & Film em Makeni, Serra Leoa. Carol McNicoll, escultora e designer, fez algumas roupas que Brian Eno usou durante seus anos de Roxy Music.
O lugar principal da mulher no Glam rock ficou sendo o de objetificada nas músicas. Bryan Ferry do Roxy Music uma vez falou à revista Melody Maker que se você comprar uma mulher, você consegue controlá-la sem compromisso. Isso sem falar das letras (a mulher como caça em Ladytron) e as capas dos discos da banda. Os homens poderiam ser bissexuais e andróginos contato que saíssem com mulheres e as objetificassem. O Glam Rock com certeza foi essencial para novos paradigmas socioculturais, mas não derrubou o sistema contra o qual lutava.
Abaixo, algumas mulheres do Glam Rock que você precisa conhecer:
Vicky Fury- Flipper Story (1975)
Paula Lincoln- It’s the monster again (1975)
Punchin' Judy - Settle down (1974)
Bonnie St Clair & Unit Gloria - Clap your hands and stamp your feet (1972)
Babe Ruth - Ain't This Livin' (1973)
Twinkle Ripley- Caroline (1974)
LEGADO
O que aconteceu com o Glam Rock? Em 1973, Bowie performa o assassinato de seu Ziggy Stardust porque sabia que quanto mais tempo mantivesse a persona, mais desgastada ela ficaria e abraça elementos do funk e soul no álbum Diamond Dogs de 1974. No mesmo ano, a saúde de Marc Bolan estava bem debilitada e o seu disco com o T.Rex, Zinc Alloy and the Hidden Riders of Tomorrow que também se distanciou do Glam, foi mal recebido. Marc morreria 3 anos depois de acidente de carro. Brian Eno deixaria Roxy Music em 73 e a banda entraria em hiato três anos depois. Suzi Quatro também adotaria outra pegada do rock em 76 e o mundo estava absorvido pela disco music e o punk rock. Ambos tiveram influência do Glam, as batidas dançantes e roupas brilhantes para o primeiro e a adoção de personas e som cru e simples para o punk. Mas cada estilo seguiu caminho próprio e o punk reagia contra a fábrica de hits que o Glam foi. O Glam inspirou a ramificação Glam Metal/ Hair Metal com Kiss, Quiet Riot, Mötley Crue e outros nomes, como também a revolução synth pop do fim da década de 70 (leia sobre o movimento New Romantic e os BLITZ KIDS na edição 3 da GOTHIC STATION aqui).
Siouxsie and The Banshees: "Eu percebi que os Banshees teriam acontecido independentemente da explosão 'punk'", diz Severin. "Enquanto a maioria dos protagonistas do punk olhava bandas de garagem americanas - Flaming Groovies, MC5, the Stooges, the (New York) Dolls – ou a cena de New York de Patti Smith, Television, Heartbreakers e the Ramones como referência, nós, perversamente, nos víamos assumindo o bastão do glamuroso art rock - Bowie e Roxy Music – enquanto incorporando um amor por Can, Kraftwerk e Neu(!)." (Steven Severin do Siouxsie and the Banshees, 2005, The Guardian)
Se a primeira fase do Glam Rock não foi inclusiva o suficiente, ela abriu os caminhos para que outras pessoas e ramificações do Glam o fizesse. A artista pós punk Siouxsie do Siouxsie and The Banshees disse uma vez que estava muito doente no hospital quando viu Bowie na TV e aquilo foi como sair do casulo porque ele encorajou as pessoas a serem quem são. Dave Gaham do Depeche Mode disse que veio de um lugar onde te falavam que você não poderia ser ninguém e depois de ver Bowie no Top of the Pops, ele sentiu que podia escapar. Richard O’Brien, criador trans do musical Glam The Rocky Horror Picture Show (1975), também alegou que o movimento possibilitou a sua libertação e consequentemente criação do espetáculo reverenciado até hoje.
São muitas pessoas que citam os grandes nomes do Glam como fonte de inspiração até hoje. The Runaways é um casamento entre Suzi e Bowie e foi a banda que transformou a minha vida. As artistas atuais St. Vincent e Lady Gaga incorporam personas nos seus álbuns. Bandas como Placebo e Suede trouxeram muito da androginia anos 70 para a década de 90. Para além dos artistas, muitas pessoas se libertaram através do Glam, o que prova o impacto transformador da música na vida das pessoas.
NO CINEMA
Velvet Goldmine
Para finalizar, é preciso citar dois grandes legados do Glam Rock no cinema. Em 1998, o diretor Todd Haynes lançou o musical Velvet Goldmine, nome que vem de uma música de David Bowie, e que retrata toda a atmosfera Glam ao contar a história de ascensão de decadência da estrela Brian Slade. O protagonista de Jonathan Rhys Meyers foi baseado tanto no Ziggy Stardust de Bowie quanto em Jobriath, e é claro que seu nome Brian Slade faz alusão a Brian Ferry do Roxy Music e à banda Slade. O filme se passa sob a perspectiva do jornalista Arthur Stuart (Christian Bale) que tem a missão de descobrir o paradeiro de Brian Slade dez anos depois de sua morte nos palcos. Stuart vive numa Nova Iorque sombria e distópica, e não é à toa que se situa no ano de 1984. Esse ano é título de uma obra distópica de George Orwell sobre a qual Bowie fez uma música presente no disco Diamond Dogs de 1974, justamente um ano após o fim do seu alter ego Glam, Ziggy Stardust. Somos transportados para a vibrante década de 70 no auge do Glam e também para a sua origem.
O filme começa com o nascimento extraordinário de Oscar Wilde, que é deixado de um óvni na porta de uma casa e possui um broche de esmeralda. O broche vai ser um símbolo importante para entender a conexão entre Wilde e os principais nomes do Glam Rock. Ele veio ao mundo para ser alguém diferente e mudar o mundo, como vemos na cena em que ele quando criança afirma querer ser um ídolo pop quando crescer. E é essa a missão dos Glam rockers. O broche é encontrado tempos depois por Jack Fairy quando apanha de outros meninos da escola, indicando que Oscar pode ter perdido ele no mesmo lugar enquanto também apanhava por ser diferente, nesse caso por serem gays. Jack Fairy é apresentado como o pioneiro da cena Glam/dandy e o diretor Todd disse ele representa Little Richards. O sobrenome Fairy, que significa fada em Português, remete ao título do artista como fada madrinha do rock’n’roll. Visualmente, Jack Fairy me lembra mais Jackie Curtis e outras atrizes trans da Factory, que também são pioneiras da estética Glam. Mas é Brian Slade que toma a cena e que é reconhecido como o ídolo Glam após tomar emprestado de outros atos transgressores, inclusive toma para si o broche de esmeralda após beijar Jack Fairy. Todd não poupou o uso de referências aos dandies, principalmente à obra O Retrato de Dorian Gray, ao longo do filme para simbolizar a ambiguidade e transgressão do movimento Glam. É tanto que o filme é baseado nos boatos de que David Bowie, Iggy Pop e Lou Reed mantiveram relações sexuais, e as próprias cenas sexuais do filme parecem ser fruto de desejo imaginário.
Oscar Wilde, autor de O Retrato de Dorian Gray
Ter feito o filme sob a perspectiva de um fã é essencial para entender como somos nós que alimentamos o culto de ídolos e suas histórias, e somos tão tocados por elas, que por vezes as mesclamos com nossas próprias experiências. Há uma cena em que o professor de Stuart cita um trecho de Dorian Gray sobre como estranhas criaturas passam por nossas vidas e tornam o pecado tão maravilhoso e é como se suas vidas misteriosas tivessem sido nossas. Esse trecho resume perfeitamente a relação do Glam com o público, e acredito que até o lançamento desse filme, o movimento era analisado puramente pelo lado musical e estético, e a obra de Haynes revigora a história do Glam. Chega a um ponto no filme que não sabemos se o que Stuart vivenciou foi real ou parte de sua fantasia sexual com Brian Slade e Curt Wild. Wild, vivido por Ewan McGregor, é uma mescla entre Iggy Pop e Lou Reed, e depois se assemelha a Kurt Cobain, o primeiro nome e o cabelo que vai ficando sujo e mais loiro indicam isso. O jornalista tem sua catarse bissexual ao se masturbar vendo uma foto de Brian simulando sexo oral na guitarra de Curt (fato que na verdade foi entre Bowie e Mick Ronson) e isso nos mostra o impacto que mídias como TV, shows e revistas tinham no imaginário juvenil e o seu poder transformador. Até ali Stuart vivia preso sob o conservadorismo rígido dos pais. E a intenção inicial do Glam rock de provocar usando da linguagem corporal para romper com o velho mundo, também foi a de Todd ao romper com o velho modo de fazer cinema. Velvet Goldmine é um estudo de um tempo não muito distante e que ainda pode ensinar muito aos nossos tempos atuais mais próximos de 1984.
Hedwig and The Angry Inch
No mesmo ano de 1998, o diretor e ator John Cameron Mitchell e o músico Stephen Trask realizaram o musical dramático Hedwig and The Angry Inch para o teatro, e depois para as telas de cinema em 2011 narrando a complexa história da artista gay e trans Hansel Schmidt. Hansel (interpretada por Mitchell) descobriu desde cedo sua paixão pela música ouvindo David Bowie e anseia deixar a Alemanha Oriental em busca de uma vida melhor. Ao conhecer um sargento, ele diz que a única forma dela escapar seria mudando de sexo e se casando com ele, o que Hansel consente. Ela então adota o nome da mãe, Hedwig, e uma peruca loira, mas a cirurgia dá errado e ela fica com uma “polegada raivosa”, explicando assim o título do filme. Quando o casal se muda para um trailer nos Estados Unidos, o sargento a troca por um homem, e no mesmo dia é anunciada a queda do muro de Berlim com multidões transitando livremente para o outro lado. Hansel, agora Hedwig, se dá conta de que foi tudo em vão, porém, tenta buscar um rumo com sua mesma identidade e resgata seu sonho de ser cantora.
Hedwig and the Angry Inch
Ela se junta a esposas coreanas de militares e forma uma banda que toca em lanchonetes. Trabalhando de babá para um comandante, ela conhece Tommy Speck (Michael Pitt) um rapaz tímido e religioso pelo qual se apaixona e ensina tudo que sabe sobre música, batizando-o com nome de Tommy Gnosis (Gnosis = conhecimento em grego). Quando finalmente os dois ficam próximos de uma relação sexual, Tommy descobre a polegada da cirurgia de Hedwig e a abandona, partindo para um estrelato usando as músicas que Hedwig compôs. Ela então forma uma nova banda, Hedwig and The Angry Inch, com músicos da Europa, incluindo seu novo parceiro, Yitzhak, o qual é tão complexo quanto Hedwig. O sucesso não vem para o grupo, que toca em lanchonetes e Hedwig move um processo de direito autoral contra Tommy.
Mas o mais legal do filme é que Hedwig se utiliza da música e estética Glam (mais próxima a do New York Dolls) para contar a sua trajetória e como nenhum outro gênero musical teria se encaixado tão bem. Sua persona nos palcos foi forjada por terceiros, mas se torna parte de si, para além de um alter ego. Mas ainda há uma parte dela que ficou para trás e Hedwig percorre o filme entrando em conflito com o que significa ser completa depois de ter acreditado que tinha encontrado sua metade em outros, baseando-se em um mito de Platão que se torna a grande música do filme chamada ‘The Origin of Love’.
No fim, Hedwig descobre que não é sobre ser homem ou mulher e sim sobre encontrar uma forma pacífica de existir sem a binaridade imposta sobre nós em relação a tudo que fazemos. Quando Hedwig, cujo nome brinca com as palavras ‘Head-cabeça’+ ‘wig- peruca’, entrega a peruca ao seu marido de gênero ambíguo, Yitzhak, é uma forma simbólica de encorajar outras pessoas que não se encaixam na binaridade a encontrarem seu próprio caminho. As expressões de gênero do Glam Rock também foram conciliadoras de identidades fora do padrão, e o filme de Hedwig mostra que se o Glam Rock nunca tivesse existido, talvez a sua história e a de tantas pessoas tivessem que ser contadas ao mundo deixando muito para trás.
Leia artigo de Sana Skull sobre os BLITZ KIDS e NEW ROMANTICS AQUI Leia artigo de Andrio Santos sobre O QUEER NA LITERATURA GÓTICA
Larissa Oliveira Professora de Inglês e Francês, zineira, radialista e escritora, procura trazer um olhar mais inclusivo tanto nas artes quanto na educação. Deve muito do que é e faz a Patti Smith, Sylvia Plath e Kurt Cobain. https://linktr.ee/LarissaOliveira90s
Matéria publicada originalmente na revista GOTHIC STATION 7, cuja versão digital você pode acessar gratuitamente no link abaixo: https://www.gothicstation.com.br/download
REFERÊNCIAS: REYNOLDS, Simon. Shock and Awe: Glam Rock and Its Legacy. Faber & Faber Ltd (2016)
Theatre Journal. Vol. 43, No. 4 (dez., 1991), pp. 471-490. The Johns Hopkins University Press
WILDE, Oscar. The Picture of Dorian Gray. (1891) Penguin Classics, 2000
CHAPMAN, Ian. David Bowie FAQ. Rowman & Littlefield (2020)
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