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O Pós antes do Punk

Depoimento de Alex Antunes (Alex Antunes foi fundador em 1984 e vocalista da banda Akira S e as Garotas que Erraram, conhecida por seu experimentalismo e o uso precursor de programações de computador, além das letras inusitadas. Alex é também Letrista, vocalista, jornalista e agitador cultural, Lex Lilith.)


Pós-punk é assunto que para mim é óbvio – mas parece que não para muita gente. Digo “óbvio” não porque não exista uma enorme quantidade de componentes e variações no que veio-depois-do-punk mas porque há, sim, uma espécie de veio principal, com uma ética-estética bem específica, que eu chamo de “pós-punk epitômico”.


Cujas características centrais seriam

a) um baixo mixado à frente, numa linha pulsante e/ ou fazendo uma espécie de suingue quadrado (que se presta a ser dançado meio espasmodicamente);

b) uma guitarra deslocada de suas funções no rock ortodoxo, com timbres mais ásperos, fazendo intervenções angulosas, ou com timbres mais borrados, fazendo atmosferas imprecisas (eventualmente junto de um teclado). Essas guitarras ou não solam, ou fazem solos catatônicos, baseados em poucas notas e repetições (alguns são legítimos não-solos);

c) vocais mais desleixados, frequentemente com entonações e prosódias um tanto estranhos, soando amadores mas convictos. Tanto o trabalho de guitarras quanto o de vocais evitará a entrega linear, a grandiloquência da catarse emocional, mas deixará no ar um quê de inquietação e distúrbio estilizados (risos).


Se você se interessa pelo gênero, talvez esteja pensando em exemplos que neguem essa afirmação. Mas se se interessa mesmo, reconhecerá várias bandas diretamente identificadas com os inícios do estilo (1977-1981) que correspondem a essa descrição: Public Image Ltd., o primeiro Cure e o primeiro Killing Joke, Gang of Four, Fall, Wire, Pop Group e dezenas de outros. Mesmo se você alegar que Joy Division tem altíssima carga emocional, eu direi que provavelmente você está influenciado pelo destino trágico de Ian Curtis, e esquecendo que ele colocava uma certa frieza cruel na sua receita – que é, digamos, a que separa Curtis de um Renato Russo (mais risos).


Talvez seu ouvido esteja correndo para a frente, diretamente para o gótico – e aí eu queria lembrar que, antes do termo goth (e da cena gótica em si), nós na época nos batemos com outras opções (quando “new wave” começou a soar festivo demais), e a nacional foi “dark”. “No wave” seria uma boa, mas essa acabou por caracterizar mais especificamente a cena de Nova York. Antes de definirem estritamente o que viria a ser o gótico, Bauhaus e Siouxsie estiveram nesse território – e mesmo Sisters surgem com uma faixa (“Alice”) que estaria nessas imediações.


Eu poderia estabelecer essas diferenciações com outras cenas que foram se descolando desse veio, como new romantic e o synthpop (na época chamávamos de tecnopop) mas acho que deu para sacar o ponto. O mais importante para mim é afirmar principalmente que o pós-punk na verdade tem referências anteriores ao punk. O progressivo mais experimental (particularmente o krautrock), sonoridades graves vindas do dub e do funk (já já reforçarei esse aspecto da black music) – o trabalho de músicos como Brian Eno, Robert Fripp, John Cale e outros já buscavam esse ouvido. Ou o Low de David Bowie não seria, já em 1977, um esboço preciso da sonoridade dos anos 1980 (incluindo a caixa da bateria bizarramente processada)?


Eu digo isso com a autoridade de quem teve uma primeira banda, o No. 2, que seguiu esse figurino à risca (não disse que é bom, só que seguiu à risca). A única gravação que sobrou de registro pode ser ouvida neste link: https://www.youtube.com/watch?v=V6lFvREzCFM. E, quando ganhei um pouco mais de habilidade, quis partir para uma camada que também se relaciona com essa – mas um tanto mais “bem tocada”, que é o punk-funk. E, para isso, o elemento fundamental seria o baixista. Foi quando eu encontrei o Akira S (Akira Tsukimoto, hoje Akira Van Der S).


Há um texto em que eu discorro sobre a gênese do punk-funk britânico (remetendo para uma playlist) em que começo com um comentário dos músicos do A Certain Ratio (uma espécie de irmão mais black do Joy Division) falando sobre sua relação com o funk dos anos 1970. E buscando entender um espectro que vai desde um Cabaret Voltaire (na ponta mais eletrônica) até um trio fortemente africanizado como o Kabbala, passando por momentos particularmente suingados de Cure, Clash, Bauhaus, Kiling Joke, Clock DVA e Section 25, além de especialistas como 400 Blows e 23 Skidoo.


Quanto às influências do Akira S, me surpreendi com um texto do Kipper aqui, no qual ele acerta várias delas (Herbie Hancock, Brian Eno, James Chance & the Contortions, Cabaret Voltaire), bem no centro do alvo. Nós partimos muito de um disco do Robert Fripp – na verdade de um lado de um disco do Fripp, chamado Under Heavy Manners – no qual ele mistura uma massa de loops de guitarra com uma cozinha funkeada (incluindo o baixista negro Busta Jones, que está no My Life In The Bush Of Ghosts de Eno-Byrne, e que fez frilas nos Talking Heads e no Gang of Four).


Partimos dos estudos de música erudita contemporânea do Akira com o professor Conrado Silva, origem dos seus exercícios editando fitas com transmissões captadas aleatoriamente nas ondas curtas (no lugar dos tais loops de guitarra), e somamos a uma cozinha funky. Interessante que a música que compusemos com esse método, nossa primeira, “Atropelamento & Fuga”, tenha sido regravada pelo Skowa & a Máfia, e acabado tocada na Xuxa (muitos risos).


Mas a nossa intenção era que o lado sombrio do som dark entrasse em curto-circuito com a música dançante, numa manobra em que, bem, os quadris se divorciassem da mente – para se reencontrar em outra dimensão. Eu chamava isso de ‘ético-pop’, não por fazer uma afirmação, mas para plantar uma dúvida.



Anna Ruth, Akira S e Alex Antunes, CCSP, 1985 (foto: Luigi Stavale)

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