HOMOLOGIA: O SIGNIFICADO DOS ESTILOS NAS SUBCULTURAS (Capítulo do livro "A Happy House in a Black Planet VOL. 2, 2018, acesse aqui)
“… quando aquele objeto é colocado dentro de um conjunto totalmente diferente, um novo discurso é constituído, uma nova mensagem é veiculada.” (Clarcke, 1976, em Hebdige, 1979)
Uma das principais diferenças entre o estilo em uma subcultura e o estilo no mercado de massas é a questão da homologia subcultural. Subculturas e culturas estabelecem redes de símbolos homólogos, historicamente fundados e mais estáveis (apesar da atualização constante e absorção de novos elementos). Já o mercado de massa trabalha com fragmentos mais desconectados que são descartados por outro fragmento sem ligação no próximo ciclo e este por outro e assim por diante.
“Homologia é o estudo das coisas homólogas. Coisas homólogas seriam aquelas que, apesar de diferentes na forma, guardam uma relação de significado ou, ainda, a relação entre um conceito ou ideia e suas formas e símbolos.
Muito importante salientar que a homologia em um sistema cultural ou subcultural não é uma relação nem fechada nem estática. De forma comparável à língua de um povo, ela evolui de acordo com a sua utilização pelo grupo social e também tem um espaço grande de ‘ruído’ que permite a sua renovação coerente e a criatividade dos indivíduos.” (Kipper, 2008)
A HOMOLOGIA NAS SUBCULTURAS
“Paul Willis (1978) aplicou a palavra ‘homologia’ a
uma subcultura no seu estudo dos hippies e motociclistas,
usando o termo para descrever a relação/adequação simbólica
(symbolic fit) entre os valores e o estilo de vida de um grupo,
sua experiência subjetiva e as formas musicais que este grupo
usa para expressar ou reforçar o que considera importante.
No texto ‘Profane Culture’, Willis mostra como (...)
a estrutura interna de qualquer subcultura é caracterizada
por uma extrema ordenação: cada parte é organicamente
relacionada a outras partes e é através da adequação entre
elas que os membros de uma subcultura entendem o
sentido do mundo.” (Dick Hebdige, 1979)
Culturas e subculturas nunca estão prontas. Os estilos nas subculturas evoluem (e se atualizam) dentro do mesmo sistema e mais lentamente. Ao contrário, os estilos no mercado de massa são substituídos cada vez mais rapidamente e por fragmentos de estilo geralmente diferentes do anterior.
Cada subcultura possui seu micromercado e sua micro-mídia, mas estes estão a serviço do sistema subcultural e não o contrário: a partir do momento que um agente subcultural busca desenvolver uma dinâmica fragmentada e acelerada de mercado de massa, ele acaba desacreditado ou expelido do sistema subcultural.
Já no mercado de massa em geral o estilo das obras e objetos não está relacionado a nenhum contexto, pois devem ser substituídas na próxima estação ou tendência: um estilo musical ou banda deve ser vendido apenas como “música” e uma roupa deve ser todo o estilo (e “experiência”) em si, sem necessitar de mais nada. Exatamente por isso essas modas satisfazem por pouco tempo: é aplicação da insatisfação programada ao mercado do estilo. É assim para que o círculo de consumo seguido de descarte e novo consumo continue girando.
Importante não confundir homologia com ressignificação, um processo relacionado mas diferente.
Vamos analisar e comparar apenas algumas poucas características e valores relacionados em algumas subculturas. Importante lembrar que aqui não estamos comentando nem estilos musicais de mesmo nome, nem indivíduos mas, isto sim, a estética e valores vinculados ao estilo (músicas, visuais, design, pôsteres, maquiagem, comportamentos, letras, padrões de beleza etc) de cada grupo social. Resumimos alguns pontos bem básicos abaixo:
-PUNK: o Punk (1977) tem um discurso estético urgente, literal e fragmentado: a estética dos fanzines é intencionalmente descuidada e “tosca”, assim como a música, a atitude, a roupa e maquiagem. Tudo negligente, com partes sobrepostas e “remendadas” (seja zine ou roupa). As letras geralmente são diretas (sem muitas metáforas e figuras de linguagem), explícitas e muitas vezes agressivas (como a música, a atitude, as roupas e os zines). “Havia uma relação homológica entre as roupas toscamente remendadas, o cuspir, o vomitar, o formato dos fanzines, as poses insurgentes e a música conduzida freneticamente” (Hebdige, 1979)”. Tudo que for muito elaborado e planejado é geralmente rejeitado no plano do discurso punk. É comum em alguns grupos punks um discurso político explícito (às vezes anarquista, outras vezes anarco-sindicalista ou comunista, entre outros). Na questão da aparência de gênero (masculino/feminino), o estilo punk subverte o modelo dominante no sentido do neutro: o visual punk não diferencia muito o que deve ser visual masculino e o que é visual feminino, mas a atitude comportamental, seja para homens ou mulheres punks, é a mesma. No estilo punk a força física não é valorizada na forma de massa muscular nem do tipo “saudável”.
-EBM: o estilo ligado ao EBM tradicional tem, historicamente, um discurso ligado a estética marcial (militar) ou do homem marcializado no trabalho industrial: isso fica claro na estética dos elementos musicais, visual das bandas e iconografia do material gráfico etc. As letras em geral são curtas ou simulam slogans. Símbolos políticos são muito usados. É comum um discurso distópico (utopia negativa sobre o futuro). O uso farto de roupas camufladas e outros elementos militares também faz parte deste sistema estético. Da mesma forma, máquinas, sejam de produção industrial ou destruição industrial são fetichizadas. Os uniformes podem ser de trabalhadores industriais ou militares.
O uso de cortes de cabelo em estilo militar complementa o quadro. Isso muitas vezes é usado como crítica ao militarismo, porém alguns não se atraem por isso no contexto metalinguístico e sim no contexto de apologia ao militarismo. Na questão da aparência de gênero (masculino/feminino), esta estética reforça caracteres historicamente relacionados ao masculino, como força, rigidez de movimento e massa muscular. Um padrão estético seria do tipo “herói da classe trabalhadora” que se via, por exemplo, em cartazes soviéticos de meados do século XX. Não por coincidência, no Cyber-Goth esse padrão estético migra mais para o padrão gótico, apesar das bases eletrônicas muitas vezes semelhantes.
-SKIN-HEADS (1969): Stuart Hall comenta que “as botas, os suspensórios e o cabelo raspado só foram considerados apropriados e, consequentemente, significativos, porque eles comunicavam as qualidades desejadas, como dureza, masculinidade e a classe trabalhadora local. Desta forma, os objetos simbólicos - roupa, aparência, linguagem, ocasiões de ritual, estilos de interação, música - foram feitos para formar uma unidade com as relações, situações e experiência do grupo” (Hall, 1976).
-GÓTICO: o estilo Gótico tem, historicamente, um discurso de rejeição ou desencanto com o presente e idealização do passado (perdido). Dificilmente vemos um discurso político explícito e direto como é mais comum no punk ou EBM: a subversão do estilo gótico percorre outros caminhos. Vemos todo um discurso com ligação com uma estética lunar (ou predominantemente Ying nos símbolos mais recorrentes): isso fica claro tanto em elementos musicais, visual das bandas, obras literárias cultuadas, comportamento, estética e iconografia do material gráfico etc. E, nos símbolos usados, principalmente organizado em torno dos eixos O Sombrio e o Macabro / O Feminino e o Ambíguo. Por comparação, vemos uma apologia à cultura erudita (como valor) que não encontramos no Punk e EBM. Como o punk, o gótico também confunde o sistema de caracteres sexuais estabelecidos, mas no sentido da feminilidade e não do neutro ou do masculino. No estilo gótico, o padrão de beleza tende a reforçar ainda mais elementos feminilidade nas mulheres, seja de forma tradicional ou alternativa, mas sem determinar um tipo físico padrão. Já no padrão de beleza masculino não há necessariamente uma valorização simbólica da força, músculos e outras características historicamente associadas ao masculino. Detalhamos as características da subcultura gótica no volume 1 e em outros capítulos deste livro.
-HEAVY-METAL: o estilo do METAL tradicional tem, historicamente, um discurso de resgate do masculino: o padrão de fotos geralmente traz homens em poses másculas (braços cruzados, maxilares projetados, pernas entreabertas, muitas vezes musculosos etc). Em muitos subestilos de heavy-metal é usada a simbologia de guerreiros de algum tipo, com os tradicionais cabelos longos. Uma estética de agressividade exteriorizada é comum e fica clara em alguns tipos de vocais e instrumentação. Mesmo em bandas com vocalistas mulheres a divisão de estética de masculino e feminino permanece a tradicional. Letras e músicas tendem a ser mais elaboradas, com uma valorização da técnica musical clássica, em oposição a valorização do minimalismo que encontramos no punk e EBM e, de forma menos generalizada, no Gótico e Darkwave (apesar dos elementos minimalistas fortes nestes estilos).
Estes são exemplos generalizantes e didáticos. É claro que existem subtipos e muitas variantes. Mas, de forma mais sutil, ou mais explícita como nestes exemplos, podemos verificar o funcionamento de relações homólogas entre os diferentes elementos estéticos de uma subcultura. O mesmo tipo de análise pode ser feito em outras subculturas de longa duração.
“…podemos dizer que um estilo nos atrai, pois de alguma forma – provavelmente não consciente – reconhecemos afetivamente em seus símbolos algo que buscamos, talvez a simulação ou a realização de um dos artigos mais raros atualmente: o sentido. Quando nos sentimos atraídos por uma subcultura, muitas vezes intuitivamente ou apaixonadamente, somos envolvidos pelas representações da visão de mundo que ela engloba e combina parcialmente ou produz uma integração na nossa visão de mundo pessoal”. (Kipper, 2008)
O QUE É RESSIGNIFICAÇÃO E REAPROPRIAÇÃO ?
Como o mesmo significa outra coisa?
“É dando que se recebe”. Essa frase tem significados diferentes se for dita por um monge franciscano, por um político ou por uma meretriz. Ou seja, o mesmo elemento estético (no caso, texto ou fala) pode ter mais de um significado. Mas não qualquer um: esse significado depende do restante da frase e de quem a enuncia.
De forma semelhante o símbolo suástica (ou swastika) é originalmente um símbolo religioso comum em várias culturas da ásia. Nos anos 1930, porém, ela foi reapropriada e ressignificada pelo regime nazifascista, tornando-se no ocidente símbolo deste regime, descolado do primeiro sentido.
Posteriormente, nos anos 70 do século XX, neonazistas e punks se reapropriam e ressignificaram a suástica, mas com sentidos diferentes: os primeiros no mesmo sentido dos nazistas originais, enquanto alguns punks se apropriam do símbolo como elemento de choque, buscando explorar o fato de que apenas 30 anos depois do final da segunda guerra mundial a suástica provocava choque, repulsa e ódio à qualquer inglês.
Acontece da mesma forma com a formação de culturas como a Brasileira (construída a partir de elementos de diversas outras) ou subculturas como a Gótica, a Hip-hop, a Punk, a Hippie etc. Esses elementos estéticos, sejam símbolos ou estilos musicais, sejam estilos de roupa ou comportamentos etc, podem ter seu sentido original reforçado ou alterado, dependendo por qual sistema cultural ou subcultural for reapropriado e ressignificado.
RESIGNIFICAÇÃO X HOMOLOGIA:
Homologia e resignificação são dois processos diferentes mas que convergem dinamicamente na bricolagem que constitui todas as culturas e subculturas vivas, assim como qualquer sistema estético vivo.
É um processo sem começo e sem fim, podemos apenas escolher o momento histórico em começamos a observá-lo. Mas dentro de recortes históricos bem definidos os significados são bastante bem identificáveis dentro de seus contextos.
• No processo de homologia elementos diferentes apontam para significados semelhantes em uma mesma subcultura, cultura ou outro contexto.
• Já no processo de ressignificação/reapropriação, o mesmo elemento aponta para significados diversos em diferentes subculturas, culturas ou outro contexto.
Por exemplo, na subcultura Gótica, o símbolo Ankh foi ressignificado e reapropriado a partir da religião Egípcia antiga. Além disso, a partir do significado que tudo que é egípcio ou oriental pode ser adotado como símbolo de fantástico e não-europeu desde o romantismo. No caso deste símbolo temos um deslocamento de sentido: o sentido original ligado à imortalidade é reforçado e enfatiza outros símbolos sobre a questão vida/morte na subcultura Gótica.
O mesmo acontece com itens de vestuário e estilos musicais. Um estilo musical ou item de vestuário podem aparecer em mais de uma subcultura com significados diferentes. Por isso, não adianta analisar apenas um elemento isolado para tentar entender seu significado em uma cultura ou subcultura.
O mesmo elemento pode aparecer ainda descolado de qualquer contexto como produto de alguma moda passageira.
Por isso, o significado do discurso estético de uma cultura ou subcultura deve ser buscado na relação ativa entre seus vários elementos reapropriados e ressignificados, e não apenas nas “profundezas” de um desses elementos isolados.
Como na frase do começo desse texto, não adianta apenas saber tudo sobre o verbo “dar”: sem análise dos outros elementos da frase e também da posição e interesse de quem fala a frase, não chegaremos jamais ao significado da frase. O enunciador é tão significante quanto o contexto e a frase.
Seja qual for a “frase”.
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