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A MAIOR FAKE NEWS MUSICAL DOS ANOS 80



“O pós-punk também reconstruiu pontes com o próprio passado do rock, vastas faixas das quais foram colocadas fora dos limites quando o punk declarou 1976 como o Ano Zero. No processo, foi instalado um mito que ainda persiste até hoje (...): a noção do pré-punk do início dos anos 70 como um deserto. Na verdade, esse foi um dos períodos mais ricos e diversificados da história do rock” (…)

“Os grupos pós-punk (...), redescobriram essas riquezas, inspirando-se na parte mais artística do glam rock (Bowie e Roxy Music), ou de excêntricos out-rock como Beefheart e, em alguns casos, o extremo mais agudo do progressivo (Soft Machine, King Crimson e até Zappa).”


(…)

“Retrospectivamente, é o punk rock que parece a aberração histórica - um retorno ao zero do rock 'n' roll básico que, no final das contas, acabou sendo um pontinho em um continuidade ininterrupta de art-rock abrangendo os anos setenta do início ao fim ”. (…) “1977 (...), na verdade a música pós-punk foi muito mais profundamente afetada pelos quatro álbuns relacionados a Bowie daquele ano: seu próprio Low e ‘Heroes’; e The Idiot and Lust for Life, de Iggy Pop, ambos produzidos por Bowie. Todos gravados em Berlim, essa série surpreendente de álbuns impactou enormemente os ouvintes que já suspeitavam que o punk rock estava se tornando apenas mais do mesmo de sempre sem novidades. Os álbuns de Bowie e Iggy propuseram uma troca do rock 'n' roll americano pelo Europeu e por um som frio e controlado modelado nos ritmos "motorizados" teutônicos do Kraftwerk e Neu!; um som em que os sintetizadores tinham um papel tão importante quanto as guitarras.”


Fonte: Reynolds, Simon. Rip it Up and Start Again: Postpunk 1978-1984 . Faber & Faber.

"os Banshees teriam acontecido independentemente da explosão 'punk'" "Enquanto a maioria dos protagonistas do punk olhava bandas de garagem americanas (...) como referência, nós, perversamente, nos víamos assumindo o bastão do glamuroso art rock - Bowie e Roxy Music – enquanto incorporando um amor por Can, Kraftwerk e Neu(!)."

(Steven Severin do Siouxsie and the Banshees, 2005, The Guardian)



MAPA, ARTIGOS e BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTARES QUE APROFUNDAM ESSE ASSUNTO PODEM SER ACESSADOS NOS LINKS DESSA PÁGINA (clique aqui) Essa Fake News - que tudo teve origem no punk - deu origem várias outras, que foram repetidas tantas vezes desde os anos 80 a ponto de não serem questionadas, se tornando motivo de culto “religioso”, apesar de escaparem à realidade histórica e à lógica.


Como toda fake News, foi reproduzida para vantagem comercial ou de status de alguns, e depois reproduzida ingenuamente por outros muitas vezes com boas intenções. Mas a boa intenção individual não muda o efeito político coletivo da desinformação.


Você já deve ter ouvido esta fake News central, que com variações, diz que “os anos 70 eram um deserto de criatividade musical, até que surgiu o punk, renovando a música, e dando origens a diversos novos estilos nos anos 80”.


Lendo resenhas e entrevistas dos anos 1970 e 1980, é possível ver claramente como a nova narrativa passa a ser construída a partir do final dos anos 1970, apagando a história musical coerente. Por exemplo, se inicialmente Siouxsie and the banshees inicialmente é comentada como tendo influências anteriores ao punk, reforçadas nas entrevistas da banda, posteriormente é construída pela mídia musical uma narrativa “pró- punk”, que ignora as características da banda. Esse é só um exemplo, em geral isso foi feito como se todas as bandas do post-punk tivessem origem no punk, o que é implausível principalmente observado e ouvindo as características de bandas como Siouxsie, Bauhaus, The Cure e Joy Division, The Sisters of Mercy, Dead Can Dance, This Mortal Coil, Opera Multi Steel, Clan Of Xymox, Poesie Noire, The Mission, e outras dos anos 80 cultuadas na cena Gótica.


Esse discurso tem tantos furos históricos e lógicos que é difícil escolher por onde começar mostrá-los.

Mas vamos aos fatos básicos que são apagados por essa fake News e suas consequências:

1) O período de 1966 a 1976 foi extremamente inovador e criativo em vários estilos diferentes da música popular. Temos inovações na música eletrônica e krautrock, space-music, na black music, no jazz, no reggae e dub, inclusão de música étnica e folclórica, sem falar em inovações temáticas e tecnológicas. 2) Essas inovações foram usadas e recombinadas por artistas de diversos estilos, gerando as raízes dos vários estilos dos anos 80: estes estilos não têm uma raiz única, nem poderiam ter, nem essa raiz única poderia ser uma que não contém as características dos estilos posteriores. 3) Assim sendo, o rótulo post-punk é apenas cronológico, não derivativo: um nome mais adequado seria “pós-tudo” ou, como foi tentado me 1977, “new musik”. Comentamos em detalhe sobre as diversas raízes e vertentes a música Gótica e Darkwave nesse mapa e artigo cronológico. 4) A ilusão criada é de uma evolução do tipo biológico, em que várias espécies derivam de um animal primitivo de origem. Já sabemos que tal lógica é um raciocínio que não se aplica à cultura e arte, mas apenas à biologia. Comentamos isso aqui.


5) O punk “77” tem um alinha evolutiva específica, apesar de intersecções, mais Garage rock do final dos anos 60 (MC5, Stooges) derivando a partir de 1978 para punk-hardcore, OI! e outras tendências e, além disso, foi essencial para o nascimento dos novos estilos de metal dos anos 80. O metal incorporou não só elemntos musicais do punk, mas de visual e comportamento, que são padrão em ambas as cenas até hoje. O cruzamento de temática de Horror com hardcore deu origem a bandas como o Misfits. Importante lembrar que o movimento punk original, nos EUA, foi bastante apagado pela narrativa “77”. Mas isso já é outra história, leia aqui a diferença da formação do deathrock nos EUA em relação ao gótico europeu, na mesma época (1979-1982).


Assim, não há uma origem comum, mas várias que se origens diferentes que se entrecruzam em alguns pontos, sendo que nenhuma contém todos os elementos. Por exemplo: 5) Toda música synth e darkwave tem outra linha evolutiva, não relacionada ao punk. Na Coldwave (batizada em 1977), Synth e Darkwave temos uma evolução que segue a evolução do Krautrock, Música eletrônica alternativa, Bowie e Eno de 1969 a 1977, além da influência da artista Wendy Carlos desde o final dos anos 1960 e o “proto-dance” de Moroder. 6) No que é chamado de post-punk e new wave (ambos os termos deram nome a recortes diferentes entre 1975 e 1982, até chegar ao significado definido nos anos 80) a mistura de black music, krautrock, dub, reggae, jazz, glam-rock, etc gerou soluções únicas e muito diversas, que não se resumem a versão simplificada de Joy Division + The Cure (ambos geniais, mas apenas uma parte). Comentamos mais sobre os diversos sentidos de new wave e post punk na introdução deste texto.


7) Na vertente Dead Can Dance, This Mortal Coil e Opera Multi Steel temos uma série de influências diferentes: a maioria as músicas do Mortal Coil são covers de músicos folk dos anos 1960 e começo dos anos 70. O Dead Can Dance, mesmo mais experimental no primeiro álbum, se define com a influência de música histórica e folclórica (como Clannad), com vocais neoclássicos. Algo semelhante ao que acontece na França na mesma época, com o surgimento do Opera Multi Steel que carrega os elementos de música antiga da banda anterior (Avaric) de Franck Lopez. 8) No caso do gothic rock da linha Sisters, Mission, Fields, Rosetta Stone, etc, temos uma presença de classic rock dos anos 1960, e tendências hard rock dos anos 1970 e começo dos anos 80 e até mesmo hard-rock e rock progressivo. A guitarra “jingle-jangle” é típica do rock dos anos 60 (ex: Birds ou os álbuns tardios dos Beatles, e o trabalho de George Harrisson).


10) Apenas uma parte das bandas post-punk/new wave era gótica*. O post punk e new wave posteriormente foram assimilados na música pop, indie e guitar, sendo associado como música "dos anos 80", com periódicos revivals no maisntream. Importante lembrar que a BATCAVE abre somente no segundo semestre de 1982, aparecendo na mídia em 1983, portanto muito tarde para ser origem de todas as vertentes e visuais góticos e darkwave que já estavam definidos (pela primeira geração 1979-1982) em várias cidades e países. Veja a linha evolutiva dos clubes new romantics de 1978 a 1983 aqui. Comentamos sobre a diferença entre subculturas e estilos musicais aqui.

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Por que explicar tudo isso? Porque estilos não surgem “do nada”. A teoria do “punk como origem de tudo” cria distorções na história e significado dos desenvolvimentos posteriores, além do apagamento de suas origens e influências. Ora, essas distorções e pagamentos desvalidam desenvolvimentos coerentes, sendo fonte de exclusão e preconceito na cena gótica e outras cenas.


A teoria de que todos esses estilos tivessem vindo do punk por “geração espontânea” exige quase tanta “fé” quanto para acreditar que a terra é redonda, contra todas as evidências históricas e musicais.

Outras fake News surgiram a partir dessa, mas isso é assunto para outros artigos.


Mas, uma vez desfeita essa ilusão, a linha evolutiva fica muito mais fácil de entender, pois não é mais necessário forçar tudo a se encaixar em uma origem comum com uma cronologia incoerente.

E fica fácil também entender que a diversidade de estilos não é amarrada por uma origem comum, mas por objetivos e intenções comuns, por uma convergência de estilos com origens diversas.


- Krautrocksampler- Julian Cope


- Rip it Up and Start Again - Simon Reynolds


- Kraftwerk: Publikation - A Biografia - David Buckley


- Are We Not New Wave?: Modern Pop at the Turn of the 1980s - Theo Cateforis


- This searing light, the sun and everything else: Joy Division: The Oral History - Jon Savage


- Mate-me Por Favor - "Legs" McNeil e Gilliam McCain


+ MAIS bibliografia detalhada em cada um dos textos.

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