LACRIMOSOFOBIA E OUTRAS BINARICES MUSICAIS (capítulo do livro "HAPPY HOUSE IN A BLACK PLANET: VOLUME 2", baixe o livro completo AQUI) No balaio comercial do rótulo “gothic metal” muitas bandas foram jogadas: realmente a maioria não tinha nada a ver com a cena gótica, mas muitas bandas (ou álbuns) que assim foram classificados tinham realmente relação com a história musical da cena gótica e darkwave. Assim, é totalmente coerente que naquela época que tantos góticos mais antigos- e também novatos- seguindo apenas a sua sensibilidade musical, gostassem dessas bandas também, pois pareciam musicalmente com outras já aceitas na cena gótica. O que é binarismo? Acreditar que as coisas se dividem em uma divisão simples de sim e não, bom ou mal (maniqueísmo), preto ou branco... e que uma vez algo classificado de uma forma, não é preciso mais pensar pois essa coisa estará sempre com essa classificação.
Porém, no mundo real, as coisas mudam de significado de acordo com o contexto, da mesma forma que a frase “é dando que se recebe” muda de significado se proferida por um religioso franciscano, por um político corrupto ou por uma profissional do sexo... :-) Atualmente podemos ver, ironicamente, jovens góticos criticando estilos e bandas que já eram bem aceitos por góticos bem mais velhos. Um purismo binário e desnecessário, que esquece a história da cena gótica. Mas vamos ver como essa situação estranha começou. Lacrimosofobia é só um exemplo. O que a “Lacrimosofobia” (fobia ou ódio pela banda Lacrimosa) esconde, além de ser uma fonte de status fácil para troos e trolls? Há mais enterrado nessa história: alguns conflitos musicais internos da cena gótica que remontam aos anos 80. Vamos relembrar: GUITARRAS PESADAS NO GOTHIC ROCK DOS ANOS 80 E 90: ANTES DO GOTHIC METAL Há o mito de que antes da avalanche do gothic metal (no Brasil, com um auge entre 2001 e 2006) a cena gótica era um paraíso de pureza post punk ou minimal. Nada mais longe da verdade. Esse mito esconde um conflito que já se desenvolvera dentro da própria cena gótica: o gothic rock e outras linhas de base wave eletrônica tinham incorporado novos elementos musicais ainda nos anos 80. Por exemplo, o álbum “Vision Thing” (1991) foi rejeitado por puristas por abraçar um sonoridade mais hard rock. Algo que o The Fields of the Nephilim já mostrara nos primeiros álbuns (desde 1987). Nesse momento, na virada dos anos 80 para os anos 90 já temos um conflito entre gothic rockers e os que consideravam apenas post punk e minimal eletronics como aceitáveis. O fato é que passado o auge da onda post-punk, no início dos anos 80, as influências musicais pessoais de muitos artistas começara a prevalecer em seus trabalhos e, pela idade deles, essas influências remontam ao rock dos anos 60 e começo dos anos 70. Além disso, essa pureza esquece a presença de bandas como The Fields of the Nephilim, The Young Gods, Skinny Puppy, Ministry e tantas outras que desde os anos 80 já tinham como elementos guitarras pesadas e o que chamamos hoje de industrial-rock. No começo dos anos 90 toda uma geração de bandas Gothic Rock mais hard rock também marca sua presença: Rosetta Stone, The House of Uhser, Garden of Delight, Two Witches, Nosferatu, Love Like Blood, The Awakening… e o próprio Sisters of Mercy, em sua versão mais hard (misturando Motorhead e Suicide, como diz o próprio site oficial da banda). Não foi só ironia a banda ícone da Batcave, o Specimen, usar riffs ao estilo Marilyn Manson e NIN no seu mais recente álbum. Para quem cresceu influenciado por glam rock dos anos 1970, é uma opção óbvia. Desde o final dos anos 80 faixas industrial rock do Ministry foram hits nas pistas góticas de São Paulo. Em uma cena já acostumada ao Skinny Puppy foi fácil receber bem o NIN inicial, e seu pupilo com maquiagem gótica e glam, o então pouco conhecido Marilyn Manson. Lacrimosa era uma banda popular, como eram Sisters e Fields. Garden of Delight tem uma grande produção nos anos 90, e sua continuação atual com o vocalista Artaud, o Merciful Nuns, segue com uma sonoridade característica. Paradise Lost fez alguns álbuns entre 1997 e 2002 que se pareciam mais com Depeche Mode e Sisters of Mercy do que com algo metal. Seus álbuns “One Second” (1997) e Symbol of Life (2002) se insere perfeitamente na tradição Sisters/Fields. Os dois intermediários (de 1999 e 2001) são até mais “Depechianos”. Para quem aceita hoje Suicide Commando e Hocico, todas essas são bandas água com açúcar... Ao lado disso, ainda nos anos 80, a darkwave se misturava bem a tendências eletrônicas com bandas como Poesie Noire, Cassandra Complex, Clan Of Xymox, Wolfsheim, Silke Bischoff e similares. Nos anos 90 evoluímos para uma diversidade musical: gothic rock, post punk, synth, darkwave, eletro goth, coldwave, eletro goth, industrial rock, electro-medieval, celtic, ethereal, ethno... etc. Ainda nos anos 90, também para quem estava acostumado com Dead can Dance e Sisters of Mercy/ Fields, continuou “catando uvas” ou “limpando teias de aranha” (dois estilos de dança ethereal/gótica) com o álbum “Aegis” do Theatre of Tragedy. O feeling mudava muito pouco em relação a outras bandas ethereal/wave, comparado a bandas com influência de doom mais arrastado. Algo bem diferente da vertente black metal mais extrema. Também várias críticas são possíveis a HIM, mas excluir os primeiros álbuns do HIM por ser “metal” (além de horrorizar headbangers, rs) excluiria também bandas como The Cult, Sisters Of Mercy, Fields e muitas que já citamos. Valo fazia um típico glam-rock (devido as origens Bowiescas do estilo gótico, algo que acaba sempre nos atraindo), as vezes hard, e seus primeiros álbuns embalaram góticos com suas melodias românticas estilo rock anos 60 no estilo The Mission mas com mais distorção (não por coincidência Valo e The Mission gravaram juntos em 2016 combinando muito bem musicalmente). Também Tipe O Negative, tanto com suas faixas cômicas quanto sérias, também fez alguns álbuns que agradaram muitos góticos que eram a “nova geração” de 20 e poucos anos atrás. Porém, posteriormente, tanto HIM, TON e Paradise Lost se afastam do estilo que os fez populares na cena gótica no final dos anos 90 e comecinho dos 2000. Já o Lacrimosa é um caso anterior e a parte: tanto Tilo quanto Annie tem uma formação como góticos nos anos 80, e todo repertório típico do estilo. Annie veio de outra banda de gothic rock, o Two Witches. Estreiando em 1990, Lacrimosa participa de toda uma geração que renovou o estilo gótico na Alemanha desde o início dos anos 90 manteve uma coerência de temáticas ligadas a cena gótica. Na cena Brasileira, banda era muito bem aceita nas casas de São Paulo já nos anos 90, inserida em sets tradicionais de música gótica, e compartilhando especiais com Christian Death, Siouxsie, etc, como comprovam flyers de época, e claro, muitos góticos que hoje já estão na faixa dos 40 anos ou mais. Lacrimosa é um fenômeno mais antigo e duradouro dentro da cena gótica, tanto nacional como internacional. AVALANCHE GOTHIC METAL: PÓS 2000 O problema pós 2000 é outro: uma cena gothic-metal cresceu muito em um movimento de moda mainstream, colocando o rótulo gothic metal (naquele momento tão vendável quanto “grunge” em 1991 ou “brit pop” em 1994/5) em inúmeros gêneros de metal sem relação com o gothic rock. E rotulou como gothic metal alguns álbuns e bandas gothic rock, como forma de vender mais essas bandas. E essa avalanche pegou a cena gótica em mais um de seus momentos de transição de gerações, em que, como tantas até então, as informações se perdiam devido ao modelo único de relações presenciais. Por isso no período 2000-2006 muita gente nova simplesmente imaginou que a nova cena gothic-metal era a única cena gótica existente, fazendo a cena gótica local praticamente desaparecer musicalmente e conceitualmente. É conhecido o caso dos criadores do site Spectrum, que depois educadamente incluíram uma parte sobre a subcultura gótica quando ficaram sabendo que existia uma “outra” subcultura gótica ainda viva: a nossa! A pergunta é: se estavam preparados para entender, como é possível que não soubessem? Como aconteceu na época uma total ausência de contato e comunicação entre gerações? Nesse momento do auge do gothic metal o problema não era mais alguns estilos ou bandas dentro da cena gótica, mas, aqui no Brasil, uma situação diferente: a cena gótica INTEIRA tinha sido substituída por uma cena metal com nosso nome. Ter bandas com The Sins of Thy Beloved, Dimmu Borgir ou Cradle of Filth como “padrão de gótico” é algo totalmente diferente de ter, como antes, o Paradise Lost fazendo um álbum com som Sisters/Depeche, ou Fields fazendo álbuns com elementos pesados. Mais: subculturas como a headbanger, a gótica, a punk, hip hop, etc, todas tem uma série de dinâmicas sociais e características de comportamento e valores bem diferentes, portanto o problema era mais que musical apenas. O lapso de informação entre gerações na virada do século permitiu a criação das teorias mais absurdas e mirabolantes sobre gótico (foi quando percebemos que era preciso manter uma base de informações básicas, como góticos ingleses já tinham feito antes pela internet). Vimos mais de uma geração bem informada não conseguir passar essas informações para a geração seguinte. Daí a importância de mantermos sempre um trabalho informativo didático sobre a subcultura gótica, em plataformas de mídia acessíveis a todos, deixando placas indicativas para pesquisas posteriores. Foi uma grande luta explicar que uma cena metal não era a cena gótica. Tivemos que lembrar a maioria de novos chegados que já tinha alguém morando naquela “casa” há bastante tempo, e mostrar que tínhamos a nossa própria tradição musical atual. Mas esperneamos e o auge da moda também passou. Hoje mesmo quem gosta tanto de gothic metal quanto de outras linhas góticas e wave sabe diferenciar os estilos e, principalmente, as respectivas cenas. Mas, no passado, o problema do gothic metal foi agravado por nossa própria culpa, devida desorganização interna na cena gótica local e incapacidade de transmitir informação e incluir de forma positiva estilos e novas gerações. Precisamos tomar cuidado para não repetir esses erros. Por isso tudo é importante não aceitar a negação de partes da própria evolução musical dentro da subcultura gótica, nem de segmentos de estilo tradicionais, caindo em purismos radicais de uma ou outra parte da tradição histórica da subcultura gótica. E, muito menos, negação de estilos e segmentos de pessoas, como muitas vezes ocorre, sob o disfarce de preconceito estilístico ou musical. No balaio comercial do rótulo “gothic metal” muitas bandas foram jogadas: realmente a maioria não tinha nada a ver com a cena gótica, mas muitas bandas (ou álbuns) que assim foram classificados tinham realmente relação com a história musical da cena gótica e darkwave. Assim, é totalmente coerente que naquela época que tanto góticos mais antigos quanto novatos, seguindo apenas a sua sensibilidade musical, gostassem dessas bandas também, pois pareciam musicalmente com outras já aceitas na cena gótica. A subcultura gótica é diversa da subcultura headbanger, punk, hip hop ou outras, por isso é preciso preservar nossas peculiaridades e diferenças mas, musicalmente é preciso avaliar caso a caso, álbum a álbum, e por vezes música a música. Compartilhamos músicas com diversas subculturas, e muitas vezes, pela convivência há intercâmbio musical entre estilos gerando obras artísticas bastante criativas e novas. Algo muito positivo em termos artísticos. O MITO “VIEMOS DO PUNK” x METAL: FAIL Um argumento ruim tira a razão até de quem está certo... Durante aquele período (2001-2006) se popularizou um slogan mítico de “batalha” mas que era uma meia verdade: “o gótico veio do punk, logo metal não pode ser gótico porque punk se opõe ao metal”. O problema é que isso carrega um grande desconhecimento musical tanto da história do metal quanto da música gótica. De fato o punk se opunha ao metal e “rock de arena” nos anos 1970, mas já na virada para os anos 80 bandas de metal absorveram influência do punk, gerando o metal moderno, como o conhecemos hoje. Então a presença de influência punk seria um argumento a favor do metal na cena gótica, não contra. Sem falar no hardcore... e emocore, também influenciados ou derivados do punk e punk rock. Mas os dois argumentos são irrelevantes, para um lado ou outro: a lógica de inclusão de estilos musicais em subculturas é muito mais complexa do que um mero determinismo musical desse tipo. Porém, aquele slogan foi tão repetido que se começou a esquecer parte da história musical da cena gótica. Assim, o trauma metálico e uma nova geração fez com que surgisse um fenômeno de “jogar o bebê fora junto com a agua suja” como diz o provérbio (significa jogar algo que faz parte junto com a limpeza). Por outro lado quem sempre odiou as “guitarras pesadas estilo Sisters e Fields”, ou estilos darkwave, synth goth ou eletrônicos, aproveitou para tirar sua casquinha... Assim, podemos ver jovens criticando estilos e bandas que já eram aceitos por góticos bem mais velhos. Um purismo binário e desnecessário, causado por desinformação, que esquece a própria história e evolução da cena gótica. Aliás, o purismo binário e maniqueísta parece ser a marca no final da década de 10. Felizmente a realidade não é binária. Abaixo, alguns vídeos das músicas citadas: 45 Grave- party time (1983) Skinny Puppy- smothered hope (1984) Skinny Puppy- assimilate (1985) The Young Gods- envoié (1986) Fields of The Nephilim- dawnrazor (1987) Fields of The Nephilim- preacher man (1987) Nine Inch Nails – head like a hole (1989/1990) Ministry- thieves (1989) The Sisters of Mercy- vision thing (1990) Die Krupps - Fatherland (A. Eldritch of Sisters Of Mercy & R. Orpheus of Cassandra Complex ) (1994) Die Krupps & Front Line Assembly – Scent (Pheromone Mix) 1996 Paradise Lost- Mercy (1997) Specimen- too much bondage / wake the dead (2012) Diary of Dreams – Epicon (2017) Fields of The Nephilim- Prophecy (2017)