MITO 3: “ANTIGAMENTE O PESSOAL MANJAVA MAIS DE MÚSICA”
Da mesma forma que os livros digitais gratuitos ou baratos criaram novos consumidores de livros físicos, a música digital gratuita ou barata cria novos ouvintes e fãs de música, especialmente em segmentos alternativos. O inimigo não é quem baixa pdf ou mp3 grátis, mas quem não lê ou não ouve música alternativa!
Nos anos 80 poucos DJs tinham acesso a informação de vanguarda, então podiam escolher as músicas de trabalho que seriam os futuros “hits”. Repetidas a exaustão, essas faixas se tornaram os “clássicos dos anos 80” que conhecemos até hoje. Ainda hoje nós DJs continuamos fazendo esse trabalho de garimpo e seleção que é parte intrínseca de nosso trabalho, mas no século XXI a formação de hits tem outros caminhos além daquele antigo.
Hoje envolve também uma relação atualizada e direta entre as bandas e seu público e seus fã-clubes.
E exatamente porque hoje as pessoas tem muito mais informação do que nos passado que dificilmente uma pessoa vai ter o mesmo gosto que outra.
Mas ter muita informação não faz com que alguém concorde com a opinião da crítica especializada ou setores com “status de conhecedores” em um dado segmento. Pelo contrário, corrói o status e poder da crítica “especializada”.
Antigamente era mais fácil as pessoas concordarem sobre “o que é bom” pois havia menos sobre o que discordar, menos opções, e mesmo em cenas alternativas havia um “bom gosto” mais padronizado. Os DJs tinham mais acesso e escolhiam músicas “de trabalho” que se tornaram os “hits do passado” de hoje.
Felizmente o compartilhamento de MP3 causou nos últimos 15 a 20 anos uma gigantesca atualização musical da cena Gótica/Darkwave brasileira, principalmente das pessoas com menor poder aquisitivo. Então a gritaria contra o compartilhamento vem exatamente da irritação das pessoas da “elite alternativa” (tanto a elite comentada no “Mito 1” quanto a comentada no “Mito 2”), pelo fato de agora muito mais pessoas terem acesso à informação musical clássica ou atualizada.
E também porque agora este gosto não pode mais ser tão controlado como no passado. Isso afeta os DJs também. DJs hoje ainda tem a qualidade de selecionar sets que funcionam melhor em pista e ainda precisam ter sensibilidade de pista, mas não são mais a fonte única de informação para as pistas de dança.
Deve acontecer com o suporte físico da música algo parecido com o suporte físico do cinema e vídeo: sobreviver como item de colecionador do que já se conhece e ama, e não, como no passado, quando o suporte era meio de acesso único ao conteúdo e informação.
Veja-se o que modelos como a Netflix (e outros) fez com as séries e cinema, e com a própria TV por assinatura. No ramo da música Spotify e Bandcamp buscam este caminho. Hoje as bandas disponibilizam seu álbuns lançados completos para audição imediatamente, mas em sistemas que impedem o download. Hoje as pessoas só adquirem o que já conheceram e selecionaram antes. A mesma lógica se aplica a shows e novas bandas.
No século passado só a mídia de massa tinha acesso “anterior” e não físico a cada um de nós (através das rádios e TVs de programação fechada), pois tinha um custo alto. Porém, no século XXI, esse acesso “anterior” e não físico passou a estar ao acesso de qualquer artista, quase sem custo, por mais alternativo que ele seja. Continua dando muito trabalho, mas não há mais a barreira do poder econômico.
Os novos modelos de venda de conteúdo cultural sem suporte físico ou por assinatura mensal devem acabar com a pirataria a médio prazo, pois são meios que cabem no poder aquisitivo local, reservando o material físico para colecionadores. Isso pode beneficiar muito bandas e shows, e mostra ainda mais como este mito 3 é obsoleto, baseado em relações de poder do século passado.
Antes, a cena brasileira vinha (salvo raras exceções) estagnada nos anos 80 até o final dos anos 90 - criando até a ilusão de que a produção musical Gótica/Darkwave tinha acabado nos anos 80.
Mas hoje temos toda uma geração (ou duas gerações já) que aprendeu e está aprendendo a gostar de música Gótica/Darkwave através da MP3 compartilhada, ou pelo Spotify ou Bandcamp ou outros sistemas de audição online que tem custo baixo para o ouvinte mas também remuneram os artistas. Os sistemas precisam melhorar ainda, mas é a tendência.
Parte destes indivíduos se tornou ou se tornará consumidora também das mídias físicas (Cds e DVDs), ou de outros produtos relacionados a música, tanto de bandas nacionais quanto internacionais. MAS só vai adquirir mídia física daquilo que já selecionou e que sabe que gosta muito. Vai comprar para guardar, não para conhecer.
As próprias bandas estão gradativamente aprendendo a usar a internet para aumentar sua base de fãs. Algumas disponibilizam faixas, EPs ou até o CD inteiro para download, se viabilizando economicamente depois através da venda de outros produtos relacionados à banda, como shows, camisetas, DVDs ou versões de luxo dos álbuns. E aprendendo sobre a importância dos vídeos na relação com seu público.
Outras bandas estão organizando seus próprios sistemas de venda de faixas online, ou se integrando em sistemas de venda online pré-existentes. É um mundo em que músicos e apreciadores de boa música eliminam a indústria da música que explorava a ambos.
Vamos nos ater a função social realizada pelo compartilhamento de informação – como a música - pela internet. A geração que cresceu com a internet tem uma forte mentalidade de compartilhamento: seu status não é medido pelo que você “esconde” no seu baú pessoal, mas pela sua capacidade de compartilhar.
Isso traz algumas vantagens saudáveis: temos hoje uma geração que na média tem muito mais informação musical do que a média das gerações pré-internet. Podemos até não concordar com seu gosto, mas seu nível de informação é maior.
Outra vantagem é que hoje as pessoas não dependem mais de “um amigo do amigo que viajou para a Europa” para ter acesso a uma novidade: o acesso se dá sem relações pessoais de “beija mão” ou “puxa-saquismo” (tão tradicionais da sociedade brasileira, não é verdade?).
Se no século passado uma banda ficava conhecida apenas fazendo shows e tocando no rádio, isso mudou hoje. O compartilhamento livre online é o primeiro passo para bandas novas ficarem conhecidas, especialmente nas searas alternativas. A capitalização e shows acontecem mais adiante.
No século XXI underground não é um espaço físico, um local ou um grupo de pessoas que se encontra. É um espaço virtual e uma escolha cultural que está em todo lugar, e que qualquer um que se interessar pode procurar e pode acessar.
Qual a diferença em relação ao mainstream? Você precisa procurar e fazer uma escolha duradoura. Já o mainstream não dura: muda periodicamente porque para uma nova moda pois faz parte de um sistema de consumismo e descarte não cultural ou não subcultural. O mainstream precisa jogar no lixo o sucesso do semestre passado para surgir com uma nova tendência sem relação alguma com a anterior.
Na era do compartilhamento, a diferença não está mais na acessibilidade, está nas características e qualidade do material cultural. Hoje características e qualidade alternativas podem atingir grande quantidade de pessoas sem que produtores culturais e artísticos tenham que se prostituir.
Assim, o consumo de mídias físicas não acabou e não vai acabar, mas só crescerá hoje a partir de uma base de compartilhamento e conhecimento livre. VOLTAR PARA O TEXTO "10 MITOS QUE PREJUDICAM A CENA GÓTICA BRASILEIRA"